sexta-feira, 8 de outubro de 2010

último trem estação - exercício de dramaturgia - Unirio


Último Trem Estação

Exercício de dramaturgia feito em sala de aula, sobre as angústias (que os anjos ouvem) de um passageiro que embarca num último trem. Aula de 8 de outubro de 2010.


      Não é que dei a cara à tapa, na cegueira noturna do meu silêncio? Dei com a cara no muro e rompi fortes tijolos de barro. Me quebrei, me redimi. Estou em frangalhos. Duas bolsas me dão a impressão de camelo. Estou com sede de cântaros gelados. Ih, comecei a ser cafona de novo. Começo a viver rebuscado. É que estou me permitindo a isso, ultimamente. A noite é fria e cala o tormento da estação. É o último trem que me vem percorrer os trilhos e estou sozinho na sua estação. Talvez primavera.
     Não é que dei a cara ao murro, soturno e enfeitiçado? Troquei 35 pérolas, 2 espingardas, 3 liras, 3 cadernos de opereta pelo teu dote. Amei seu pescoço amante e desejava ser mais pérolas. Estou dentro do trem, volto pra Portugal. Não sei mais por onde anda seu pescoço. Você fugiu e se refugiou na minha angústia gulosa. 
    Escrevo essa carta no caminho, enjoado de ver árvores correndo na janela. Preciso registrar nesse último trem que minhas últimas letras são feitas de angústia sólida. No vidro do trem está esse homem amarelado, de grande cavanhaque, que é o tempo. Um pigarro engasgado, a mente já insana vivendo você. Com quem estou falando? Ela. Você. Fugiu.
   Chegando a Portugal tenho meus pais morrendo. À mesma hora do mesmo dia do mesmo outubro. O pai está em Lisboa e a mãe no Porto. Quero ainda entender pra qual desses caminhos o trem me leva. Mas do que importa, se os dois estarão morrendo? O trilho se divide? Quero me dividir em dois e me enterrar em duas cidades mansas. Nas terras boas de minhoca.
    Estou sozinho no vagão amarelo. Escolhi este porque os outros são cor de cinza. Então eu grito até a garganta secar. Aí fico só no gesto, suado de me flagelar. 
    Mas ela é tão bonita; lembro do sorriso, do cabelo, o sorriso... ela fugiu. Se eu pudesse me dividir em dois, aí sim iria procurar ela. Você. Não, não quero te encontrar. Foi você quem fugiu.
   A neblina lá fora é tão branca, tão bruma, tão uma massa-nuvem só que começo a engasgar. Estou tangenciando o cafona. Não sei por que não mais enxergo. Tateando, tateando. Ali você, se escondendo na sombra. Me atiro na sombra, com o trem em movimento. Aí rolo, caio, perco. Aí paro.


Marli Gadot

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