quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Underwater Love

pra lavar o sótão:


O que que é esse amor d'água?

Interlúdio


INTERLÚDIO

Prefiro criar um interlúdio e tapar o buraco largo da espera com esses sons de regozijo. Emito. Meteorito. Uma estrela caiu agora. Mas não vi, pela quantidade de luzes na cidade. Cabeças de neon distantes dos planetas. Eu criei dois planetas com vista pra Terra. Ainda estou pra te explicar...
Tô parando. Esperando. Desespero. Exagero. Verdade.
Espera a época. É primavera, não sente? Quero deitar na calçada, como a pressa. Mendigar e ter preguiça sem pudor. “Me dá um pouco do senhor? Tô com a fome dos séculos...”. Língua estilingue de sapo. Já!
Entrei dentro de você, sou teu feto e você é meu teto. Fato. Sou fogo fátuo que de fato me consome. Nasço e fico onde quero. Hoje falei com Deus no telefone. "Jesus, passa pra Deus?". Você me viu ligar e perdi meu pé. Como farei pra andar naquele caminho nosso? Um só?
O próximo avião que passar eu pego. Faço sinal da janela. Talvez Austrália. Hoje pensei no banho, às 23h45min, muito cansado: “do seu lado me sinto um canguru”. Não tenho nada de muito interessante, além dos dois planetas com vista pra Terra. Ih, não tenho tempo pra tudo! 
Interlúdio, preenchimento, enchimento da nota, nota, nota musical. E a letra, essa história que desenrola. Alegria barroca. Deu cansaço de mim. Troca comigo de corpo, uns três dias? Tua alma grande vai ficar apertada em minha mixuruquez. Vair sair lépida e amarrotada, com som de rolha de champagne. Espoca. Aí explora o que quiser, mas devolve diferente de quando trocamos. Me atira no formigueiro. O interlúdio é um improviso desse intervalo. Verdade. Exagero. Desespero. Esperando. Tô parando.

Marli Gadot


domingo, 26 de setembro de 2010

Exercício do Sinisterra para a dramaturgia do ator


UNIRIO
DRAMATURGIA
turma 2010/2

EXERCÍCIO DE JOSÉ SANCHIS SINISTERRA PARA CRIAÇÃO DE UMA DRAMATURGIA

DRAMATURGIA DO ATOR

CRIAÇÃO COLETIVA:
Dois autores, dois narradores, dois dramaturgistas e dois atores:


EXERCÍCIO 1

Ela e Ele se olham. Ela traz certo rancor. Ele está sério. Ela está na beira de um rio. Ele se aproxima. Ela olha para Ele novamente. Ele sente muito calor e tira sua camisa. Eles estão trabalhando no rio, lavando roupas. Se entreolham novamente e estranham-se. Ele bate a camisa no quadril dela, que está de gatinhas, e depois começa a afogá-la.

Narrador - Era um tempo antigo... duas pessoas se matavam por alimento.

Ela e Ele se entendem. Riem.

Narrador - Naquele momento lembraram que tudo aquilo podia ter acontecido na infância deles.

Ele puxa Ela.

Narrador – Ela é amante dele. Se amam, mas não podem estar juntos.

Ela e Ele ficam em dúvida e se arrependem. Ela quer sair pela porta. Ele pede pra ela voltar.

Narrador – Mas a entrega era forte e eles não conseguiam se desvincular.

Ela e Ele correm com prazer. Jogam a camisa dele para o outro. Brincam.

ELE – E aí?

Narrador – Tinham a memória da infância e isso não os deixava em paz.

Ele e Ela se sentem proibidos de estar juntos. Ela nega Ele, que avança sobre Ela.

Narrador – Ela era irmã da mulher dele.

Eles ficam tristes.

Narrador – Era uma tempestade de palavras, almas e corpos que se confundiam em sentimentos e palavras.

ELA – Você não pode.

ELE – Tenta.

Ela devolve a camisa a Ele.

Narrador – Outro alguém é escutado de longe.

Ela fica desconcertada e Ele coloca a camisa.

Narrador – Um barulho de helicóptero se aproxima. Eles sabem que Joana chegaria de helicóptero. A irmã olhava com tristeza e paixão.

Ela e Ele apagam as marcas que deixaram na casa, limpam chão e paredes. Continuam deixando marcas. As mãos dele ficam evidentes marcadas no piso com o pó de giz.

Narrador – ouve-se a campainha. Eles sentem medo.

Ela está na janela, de costas pra porta, finge uma cena natural. Ele está na porta.

Narrador – campainha!

Ele bate na porta. Faz todo o clima de estar recebendo Joana com tensão. Começa a se explicar. Ela, na janela, vira já se explicando. Até ver que não era ninguém.

ELE – Você acreditou que era a Joana!

Ele morre de rir. Ela bate nele também rindo, passado o susto da brincadeira.

ELA – Tarcísio!

ELE – Joana! (percebe a gafe) Não, desculpa. Desculpa. Qual é o teu nome? Qual é o teu nome? Qual é o teu nome? Me diz o teu nome.

Ela não responde.

ELE – Mulher que eu amo é Joana.

Ela e Ele destroem a casa, correm loucos pelos cantos. Ela estapeia Ele.

Narrador – Eles se percebem naquele instante. Seus corpos se uniam vagarosamente.

Eles se entregam. Riem. Falam de Joana. Se deitam no chão, como bichos, não entendendo nada além da paixão que sentem.

ELA – Você pode me chamar de Joana.

FIM
  
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EXERCÍCIO 2

Narrador – Eram tempos inquietos aqueles. Setembro mexia com a mente dos dois. Não se mexiam mas fervilhavam por dentro.

Ela está com as mãos pra trás. Ele começa a correr, depois de observá-la bem.

Narrador - Era uma dúvida cruel. Ela vinha de onde? Quem era? Mas ele a seguia na rua e estava perturbado.

Ela – Você não cansa, não?

Ele – Estou cansado. (estende a mão a ela. Ela fica curiosa)

Ela – Está cansado?

Ele – Sem forças, é o tempo.

Ela puxa a cordinha da blusa.

Narrador – Pela primeira vez ele via algo que ela mostrava. Mas ele não gostou.

Ela – Quem desdenha quer comprar.

Ele – Eu quero o pacote todo. (silêncio) Meu corpo te provoca?

Ela ri

Ele - Isso é um sim? (olha para o chão. Quase pisa em algo) Que nojo!

Narrador – Ele falava como se cuspisse pedras nela.

Ele começa a fazer cosquinha nela. Jogam o que ela antes escondia. Brincam de lançar um para o outro. Ela morde. É uma maçã. Ele morde um pedaço.

Narrador – Não restava dúvida que eles não batiam bem... estavam numa praça fazendo códigos nada convencionais.

Ela e Ele escovam dentes. Ela ensina a Ele a escovar.

Ela – Tem que escovar a língua, assim... até dar vontade de vomitar.

Ele vomita.

Narrador – Todos param em volta para vê-los.

Ela – Alguém quer dar dinheiro para ele?

Ele – Estou cansado.

Narrador – Deliram como numa maré.

Ela – É a maré da vida.

Deitam um sobre o outro. Os dois para cima.

Narrador – O peso dos dois abria fendas na terra.

O joelho dela, que está por baixo, se machuca. Ele deita mais sobre ela.

Narrador – Cicatrizes faziam lembrar do passado.

Os Dois - Estamos esperando o médico.

Ela – O médico que vai cuidar de você.

Narrador – A solidão dos dois parecia um apartamento apertado que esmaga.

Ela e Ele sentem calor e se abanam. Começam a sentir frio.

Narrador – Fazem esforço grande para finalizar o trabalho. Hoje é 7 de setembro.

Ela faz pose de estátua de guerra. Ele admira.

Narrador - Em setembro voltavam às fendas que abriram na terra para lembrar de quando se conheceram.

Ele vai até a janela e aponta algo para Ela.

Ela – Eu fazia aquilo antigamente. Mas agora não faço mais.

Ele – Quem é aquele homem barbudo?

Narrador – Um achava que o outro não batia muito bem... então os dois correram até o homem barbado que estava indo almoçar.

Os dois correm e saem pela porta.

FIM

sábado, 25 de setembro de 2010

Memória Virtual


Memória Virtual


Um homem foi parado por um casal feliz no calçadão do Leblon. Eles pediram que ele fosse o fotógrafo daquele segundo. Ele sorriu, pegou a câmera com intimidade – gostava de tecnologia. E fez a grafia daquela luz numa memória virtual. A fotografia segura o instante. Fotografe seu momento.
Dali entregou a câmera para o casal, que agradeceu de modo abafado com o riso da foto que já viam afobados. Acessar os segundos atrás.
Ele continuou andando, mas se sentiu diferente. Enquanto esperava um ônibus, sorria sem graça, disfarçava. Parecia estar sendo fotografado. E por eu estar te contando isso, uma cópia da foto é sua. Fica pra você, guarda na carteira. Não, tudo bem. Pode amassar...
Dentro do ônibus ele observou que o motorista havia parado no sinal vermelho, ao lado de um carro vermelho, de uma mulher vermelha que estava de batom vermelho. Ele olhou num ângulo acima pra dentro daquela intimidade, pra dentro do carro dela. E a imagem muda parece nos dar a possibilidade de ler o pensamento. O motorista foi percebido pela mulher, que rapidamente levantou os vidros pretos do seu carro. Ela havia se sentido com raiva de tudo. Ela queria trabalhar na Barra, onde mora, mas trabalha em Copacabana. Nunca lhe pedem pra tirar fotografias na orla. Esse foi o pensamento que o homem teve ao ver a imagem muda desaparecendo pelo subir do vidro escuro – um muro.
O homem olhou pra sua direita quando veio outro sinal vermelho. Viu Elias Gleiser caminhando sem camisa em Ipanema, de óculos escuros e traço engraçado. Lembrou de “Sonho Meu”, novela que gostava de acompanhar.
Ao saltar do ônibus passou em frente a muitas vitrines e vidraças dos térreos dos prédios. Gostava de ver sua imagem na cidade. Mas agora pensava além do seu corpo. Lembrou de sua noiva. Eles quase nunca riam juntos. Sorriam demais, parecia pra preencher algo no espaço vazio. Ele se viu preso numa foto de memória virtual. E pensou nunca ter passado com ela por algum momento como o do casal da praia.
Olhou a temperatura num daqueles pirulitos altos que trazem as informações cotidianas. Pra não se esquecer do presente. Estava calor; andava depressa e estava atrasado. Percebeu que no trajeto para seu trabalho, havia preenchido densamente o que precisava preencher ali.

Marcelo Asth

fundação


Vim aqui lhe dizer como me interessa o seu sorriso. Que em cada abertura, me estremeço com orgulho pra você não me notar. Tenho a fome dos curiosos em querer te ver de bem perto, sentindo o calor sem tocar. Minha vontade é desabar o mundo e recriar outro em teus moldes. Que ao invés de a gente ter que dormir, o mundo de gente fique por horas dançando ciranda. Nesse mundo vai ter encontro, carne e loucura na hora em que vier desejo. Baião de dois. Acessamos a emoção do outro e vivemos o instante da vida, cúmplices da felicidade de admirar. Quero  que sua voz seja um alarme pra minha vontade e teu olho a direção que me guia. Queria te ver com muito vento na cara, fechando os olhos, esgarçando um sorriso sem riso. Não dá pra evitar. Pensamento não se adestra. 

Amo sua existência num profundo respeito de alma.

Dizer como estou pensando... lembrando e pensando. 

E fundarei nosso mundo te pensando.




Marli Gadot

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

lari-lará



Vamos contar até 3 e nos despedirmos do sol. Enquanto aquele edifício preto implode, aquelas girafas me olham incertas e me aterrorizam. Você está aqui pra proteger. É do mesmo tamanho que eu, da mesma largura, mas me protege de todas, porque quando me engole teu abraço não há outras imagens que se sustentem. Me prende.
Depois de 100 respirações e vastos carinhos era necessário pisar firme o chão, dotar-se novamente de carne e cor e acordar friamente, enrugado e de rosto quente. Diferente de outros dias dormidos e sonhados, não havia nada hoje que conseguisse me tornar corpo. Daquele sonho não conseguia sair. Não conseguia. Uma roupa voou, se desprendeu do varal, aquele cachorro sem cor que vigia latiu. Vento, minha mãe correndo atrás de dinheiro, muitos tijolos pretos no chão, uma conversa tola e a espera de um falecido num cenário estonteante. Você me olhando bravo e cansado de me esperar.
Te prendi, descobri a fórmula pra te acessar. Eu dentro do meu sonho estou tendo consciência de que essa é maneira de te prender. Passei a entender que é escolha minha não acordar. Não por hora. Não por dia. Hoje não volto ao meu dono. Perdi meu reino, mas bebo água de onde quiser e levito para você admirar. Mas você logo me olha bravo e cansado de me esperar. Impaciente. Eu ainda não vou, não. Deixa eu enrolar mais um pouco. Te prendi. Fica aí e relaxa, deita no rio que sonho.
Dentro de sonho não se calcula tempo, mas pro corpo que fraquejava e nem babava mais (por falta d’água), haviam se passado uns bons dias. O olho já inchado, não abria. Remela como cimento. Longe do corpo, próximo ao nada, você não me engolia com abraços e me olhava ainda mais bravo. Você não podia sair. Mas porque, se eu perdi meu reino e este é meu sonho? Eu impero. Você espera. Foi assim que a gente combinou. Conversa tola.
O meu dono começou a latir vigiando. Tenho que acordar. Esse foi o meu acordo. Não posso fazer nada. Sou tão fraco. O coração dispara. Quero me esconder de vergonha. Por não poder viver aqui. Preciso ganhar o reino de volta. 100 respirações. Pra ficar bem tonto e não acreditar.  
A orquestra foge, minha mãe se encontrou com o avô morto, pagou seu caixão. Os tijolos pra quê? Ainda estão ali atrapalhando estúpidos. Tua imagem agora é turva, não vejo teu rosto. Que pena... estava tão bonito azulado. Mas ainda o sinto zangado.
Eu preciso voltar. Vamos contar quantos têm em nós dois e nos despedirmos do sol. Ah, quantos nós quando sós...
Não, não late no meu ouvido.
Você cavalga a girafa cega. Distante já.
Meu olho de vidro emperrou. Na janela da pálpebra não consigo abrir por nada aquela veneziana escangalhada. Eu tenho um cheiro insuportável. Ninguém veio me acudir? O erro foi deles. A janela travou, está difícil levantar. Meto o pé na porta. Fenestra funesta. Acorda!
Eu sequei mesmo... morreu meu corpo, mesmo. Mesmo. Mesmo. 2 segundos suspensos pra registrar, com o sangue preenchendo gelado a cabeça. Me prendi. Perdi o sonho, deixei você se apagar por besteira. Eu quero continuar sonhando, mas o meu cérebro aos poucos vai se apagando. Queria tanto participar. Os tijolos... proteg...


(...)


Regina soltava pipas que customizava. Por morar em frente a uma praia vazia, à noite se perdia em recreio, dando sempre mais linha. Mais linha. Mas seu pai era austero, não gostava de pipas. “Regina, recolha as pipas, é melhor assim...” – o vento soprava conselheiro. Mas Regina estava cansada e queria vencer. Soltou o fio da pipa. Correu solto o fio na mão, beijando e traçando o destino. Solta, ela nunca voou tanto pra dentro da sua desilusão. A linha sempre embola quando esbarra nas estrelas. A pipa rasga e a noite não vê.


Regina se engasga. De prazer.  

DIÁLOGO

Dramaturgia - UNIRIO
22 de set. 2010
Exercício de escrita em 5 minutos, a partir da observação das partituras inspiradas em estátuas de Rodin. 2 personagens - diálogo:


ELA – Não quero ver seu rosto.
ELE – E é só o que busco ver.
ELA – Você não me entende.
ELE – Quero me oferecer. Se entrega logo!
ELA – Não tenho tempo.
ELE – Eu estou sofrendo. Me lança um olhar, me dá um beijo.
ELA – Quero olhar para o céu.
ELE – Vou me jogar no mar.
ELA – Só gosto do som das ondas.
ELE – A espuma está me convidando.
ELA – Você está me desconcentrando.
ELE – Não é minha intenção. Se concentra em mim.
ELA – No céu há círculos concêntricos. Você está me desconcertando...
ELE – O mar está me levando. Me machuca lento.
ELA – O que você diz?
ELE – O mar...
ELA – O céu...
ELE – Quero me entregar. Quem me quer como oferenda no mar?
ELA – No céu brilha a constelação de Orion. Estou lendo meu mapa astral, escutando estrelas. Betelgeuse... Bellatrix!

(pausa)

ELE – O que me mata é que sei nadar, não consigo morrer. Vou me embalar. Cantar pra me consolar. (borbulhas) Te amo só de te olhar... é estranho. Estou mergulhando. O oceano é gigante! Como é frio... Estou chorando e enchendo o mar. Mas ainda te vejo, tremida e distante. Me ouve? (borbulhas)
ELA – Você está me desconcentrando...
ELE – Um abismo de água. A agonia é lenta nessa redoma pesada. (borbulhas) Não estou mais falando pra você. Meus cabelos se tornaram anêmonas, meu corpo é de sal. Minha entrega ultrapassa a dor.
ELA – Vou beijar a escuridão de cima.
ELE – Me beijo no barulho da água.

(som de ondas) 

Marcelo Asth

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Imaginação

Livre exercício


IMAGINAÇÃO


Com que cuidado ele repousou o antebraço esquerdo na mesa ao abrir um livro que o consolava na noite? O corpo talvez estivesse cansado dos dias, mas seus olhos sempre abertos, dispostos a ver mais, sempre mais. Muitas folhas têm um livro, mas elas são varridas. Como ele olhou o futuro? Tendo um meio-sorriso no rosto, como o habitual? Expressando desejo? Eu vi um bocejo? Não, foi impressão. A imagem turva. Só vejo o que é curva na imaginação. 


Marcelo Asth

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Trapézio

Vontade é o pior vício, é aquilo que não se cabe em si. Ela é um estado de solação celular. Mitose. Me toma, me pega na multiplicação da vontade expandindo o universo. É por isso que me escrevo em verso, pra rimar, rimar, rimar por mares e beber uma onda cheia a cada soluço sem solução. Estado de gelação.  




TRAPÉZIO

Me esconde ali debaixo do teu cacho, pra que eu sobreviva. Qual o calor exato sob seus cabelos? Pra que fique próximo ao pensamento. Estive pensando no que vale a pena. Fora o mundo, só felicidade. A minha felicidade é enterrar antigos eus, póstumos arrependidos. Todos congelaram no primeiro segundo de queda. Às vezes foi suficiente pra preencher bloqueios aéreos. O que são trapezistas? Penso que não sabem amar. Porque têm coragem demais pra eu compreender.

Eu estava ali perdido sem entender a vida, encostado no muro da falsa percepção. Um rombo se abriu rente às minhas costas, e caí tonto para a teu campo de uma outra placidez, inatingível. Agora estava dentro dela. E minhas retinas implodiram de um medo delicioso. Era tanta luz que emitia que eu desejei ser escuridão. Ali debaixo do teu cacho, esperando teu sorriso, batia palmas como quem era a mais bonita platéia. “De camarote, camarada.” Parece que você pensava. Parece que você sabia que eu queria ser treva pra absorver orgasticamente a luz eminente. Organicamente.

Os dias foram se estendendo... quem foi entendendo os dias? “São precipícios de antiga festa”, sua mente pensava um poema inquieta. Verdadeiramente. Sua liquidez, sua fala risonha, aquilo tudo era demais pra mim. Eu não agüentava tanto admirar, me sentia fraco de tanto sorrir. Fiquei tão tonto de beleza, que escorreguei do cacho (não tive perícia pra segurar). “Êpa”. Parece que você pensava. É porque me veio o som. Parece que você sentia, assaltado. Transpassei mais de um segundo enquanto te via procurar um muro mais alto pra derrubar. Parece que você sabia que eu me esquecia no ar.

Marli Gadot

LA FOULE

Esse texto não é meu, mas é um dos meus bons guardados, coisa que a gente toma quase como nossa - mas que quero aqui partilhar. Edith canta. E muito bem demais. Quero que ela dance com suas mãos no meu sótão e rodopie. Não espero que a turba pare a farândola. Veja sua interpretação pra LA FOULE.

E aqui uma tradução:


Eu revejo a cidade em festa e em delírio
Sufocando sob sol e alegria
E escuto na música os gritos e os risos
Que eclodem e ressoam em volta de mim.

E perdida nessa gente que me empurra
Atordoada, desamparada, eu fico lá
Quando de repente, me recupero, ele recua
E a multidão vem me lançar em seus braços

Empurrados pela multidão que nos leva
Nos arrasta esmagados um contra o outro
Formamos um só corpo e a onda sem esforço
Nos empurra, unidos um ao outro
E nos deixa a ambos rejuvenecidos, inebriados e felizes

Arrastados pela multidão que avança
E que dança numa louca farândola,
Nossas duas mãos ficam suadas
E às vezes as levantamos.
Nossos corpos enlaçados voam
E nos torna a ambos rejuvenecidos, inebriados e felizes

E a alegria estampada pelo seu sorriso
Me transpassa e jorra dentro de mim
Mas logo eu dou um grito entre os risos
Quando a multidão o vem arrancar de meus braços

Empurrados pela multidão que nos leva
Nos arrasta, nos afasta um do outro
Eu luto e me debato 
Mas o som de sua voz se abafa com risos dos outros
Eu grito de dor, de furor e de raiva
E eu choro...

Arrastados pela multidão que avança
E que dança, numa alegre farândola,
Eu sou empurrada para longe
E crispo meus punhos, amaldiçoando a turba que rouba
O homem que ela me havia dado
E que nunca mais encontrei...

sábado, 18 de setembro de 2010

Vento


Dramaturgia
esse é um dos meus textos mais antigos: 

VENTO

O seu nome era palavra feita sob medida pra vestir a minha língua. E o meu cabelo era o manto em que ele se envolvia. Dizia falar de um perfume que sentia nos fios, algum cheiro que o levava à infância. E era sempre pra ele depois do sexo um prazer, uma mania, cheirar profundamente os meus cabelos.
Ele não me tinha muito romance, muito carinho. Não me enchia de delicadezas enquanto me olhava, mas esse era o instante em que me sentia mais intensa. Era como se eu desse algo a mais do que meu corpo para um homem. Era uma necessidade minha entender que existia algum outro prazer em nossa relação.
Como ele talvez fosse o primeiro homem a registrar alguma sutileza que me chamasse a atenção, eu tinha uma necessidade de achar que o meu amor deveria ser entregue em confiança a este, que um pouco mais me conferia.
Um dia fui à beira do rio me banhar no sonho do sol e o vi com uma mulher conversando perto do areal. Seus corpos conversavam, dançavam e faiscavam num bailado, coreografados em sintonia e risos de gargalhadas. Eles se banhavam num canto de areia do rio que corria quase parado, com águas lentas a passar com desconfiança sobre aqueles corpos que ali maliciosamente se tocavam.
Não disse nada. Voltei a casa. Voltei a casa. Voltei a casa. Voltei ao espelho. Cortei todo o meu cabelo com uma tesoura que usava pra cortar a linha dos bordados. Cortei mais que fios desta vez. Cortei um bordado de sonhos. Que me deliravam no eco das batidas do peito, tanto o meu quanto o dele. Eu não disse nada. Nada. Cortei. Mais que fios.
Com as mãos trêmulas e vestidas de luto e frieza, juntei todo o meu cabelo cortado e misturei numa massa de bolo. Fiz o bolo que ele preferia. Proferia, profetizava, pronunciava palavras de raiva. Fiz o bolo que ele preferia. Com o cabelo que ele preferia.
Terminei o preparo do bolo. E coloquei num prato grande de festa, de servir sobremesas que os homens tanto gostam. Fiz o que ele preferia. Esperei ele chegar a nossa casa, cansado de puxar areia do rio.
A porta de casa abriu. E não foi o vento. Foi ele, no mesmo tempo e ritmo em que sempre a abria. Como conseguia?
Deitei na cama acolchoada que trazia ainda o peso que o nosso amor fazia. Careca. Ele antes de me procurar, cortou o bolo e comeu um pedaço. Sentiu nova textura e gritou. Novo paladar. Um que envolvia susto e inquietação. Abriu a porta do quarto e viu a mulher que agora se revelava. Morta, nua, decrépita e infeliz com seu amor barato. (Pausa). E foi assim que morreu o homem que eu tanto amava. Sangue. Corre um rio vermelho e lento. Foi ele. Não foi o vento.

Marcelo Asth

O viajante

Dramaturgia
Exercício livre. Deu vontade:


O viajante - trecho


(cenário: poste antigo com canteiro à volta no meio da cena. Nada mais. Sempre).

(Homem conserta poste, troca lâmpadas. Um Viajante, com uma mala. Trocam palavras).

Viajante      - É hora.

Homem       - Tem certeza de que parte hoje?

Viajante       - Há uma luz no fim do túnel.

Homem        - Sou eu que troco as lâmpadas.

Viajante       - Eu busco a luz.

Homem        - Mas há um peso sobre mim.

Viajante       - Há uma luz no fim do túnel.

Homem       - Sou eu que quebro as lâmpadas.

(silêncio)

Viajante      - O que há de errado no oeste?

Homem       - A corrupção. Eu sei, eu vim de lá.

Viajante      - E o que torna um homem corrupto?

Homem       - Têm respostas que vem antes das perguntas. O homem corrupto já nasceu. Nada se torna no mundo. Uma lâmpada se acende, um estado de espírito não.

Viajante      - E você, quebrando as lâmpadas, faz tudo se apagar. E esse estado de espírito não?

Homem       - Uma vez despertado, não. O cérebro capta aquela mensagem e se torna seu. É de sua propriedade a corrupção. Mas te digo, não vou tão mal...

Viajante      - É disso que eu fujo. Do que desconheço. Há uma luz no fim do túnel.

Homem       - É só uma opção.

Viajante      - Essa terra me deu bons momentos, mas preciso saber o que há fora daqui. Não sei pra onde vou. Mas aqui não piso mais.

Homem       - Grave bem a imagem desse instante. Percebe quem você é quando sai. E  quando diz isso.

(viajante olha à volta)

Viajante     - Nada demais. Deve-se ter mais imagens em outro lugar. Permita-me entender. Adeus.

Homem      -  Um conselho. Quando se vai para o oeste, a bússola costuma se perder.

Marcelo Asth