segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Mar de Garrafa



Mar de Garrafa


Essa gente brinca porque se inventa. Pra que os momentos todos sejam diferenciados. E dali surge um tanto de músicas infantis a partir de falas desprovidas de significado. E mais ele do que ela canta com uma voz doce e fina repetindo a última frase dita no espaço. Dançam apenas pela brincadeira.
Contêm-se no desejo, mas mesmo na rua debocham da normalidade, acariciando as peles. Lá vêm os dois tontos de mar, caindo sempre numa cama barata com cheiro de maresia. A maresia é uma névoa de átomos e sais, suspensão do caldo rico do mar. Enferruja as âncoras abandonadas e faz trancar portões de outros tempos. Tem locais em que come tudo, gulosa. Mas pra eles nada disso importa, pois o perfume do ar é de um sabor de néctar salgado que abre todos os tipos de apetite.
Um marinheiro e sua dama do porto. Ele havia passado uns tantos dias no vai e vem das ondas e agora se refugiava no vai e vem das coxas dela. Brancas. Ela havia vivido tanta ansiedade no vai e vem da espera e agora se abrigava na luta que os corpos faziam.
Se ganham e se perdem num embate. Empate; patusca empatia. Riem de doer as barrigas inquietas. O sangue aferventando e os poros se abrindo. Que deleite é querer.
 É preciso rasgar lençóis ordinários, cuspir nas paredes, gemer de delírio e esquentar os tijolos do quarto, depois de quebrar as lâmpadas e uivar para a lua. Os dois cumprem-se na irrupção da entrega relevante, fruindo saborosos. Todo aquele gim, um resto de uísque, charutos da marca Henry Clay vindos da Birmânia e toda aquela marra, toda aquela amarra é de se amar no encontro do par. Nó de marinheiro e bússola de navio.
Resolvem sem pressa e em rebuliço, quando se dão ebulindo, tateando, tatuando mordidas, mapeando, lambendo e sorrindo embebedados de alívio. O sol se vem explodindo de quentura e enquanto ela dorme (ainda gemendo), ele se lava e se veste automático. Pega uma dessas garrafas que os dois quebraram na madrugada e leva com ele. Vai embora e ela acorda. Ela sabe que ele volta depois. Ele enche a garrafa com uma porção do mar e bebe pra se despedir da terra. Mais tontos dias de água...
Não ouvi tão bem porque ele estava mais distante (já depois das ondas), mas acho que cantou com voz doce e fina a frase "presentificando a madrugada a cada segundo". O cheiro que fica na mão dela traduz toda a euforia. Horas com a mão em concha próxima às narinas, respirando a felicidade, uma lembrança olfativa. Toca-se ao acordar com aquela mão de vestígios masculinos. Depois se cobre com as vestes sujas e rasgadas de ontem, pega outra garrafa e vai até o porto enchê-la com outra porção de água. Bebe o mar engarrafado e soluça uma solução salgada que beija o navio do seu bem que lá vai embora e sabe-se já que volta.

Marli Gadot

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