terça-feira, 31 de maio de 2011

Filho

- Filho, já disse... desce da árvore. Tenho que te dar de mamar.

E a mãe com os seios fartos de leite, pingava pelos campos, semeando pequenos miosótis. O filho, colocado sobre o galho pelo vento, decidiu-se por ali como casa. A mãe, angustiada, chorava, pedia pro filho vir ao encontro de seu colo. O filho adquiriu garras e apreço pela árvore, que o nutria. Nasceu um broto de seu ouvido esquerdo e do alto de sua moleira, uma flor inédita, matizada em roxo e vermelho. A mãe decidiu escalar a árvore. Seus pés se lascavam, sangravam. A árvore a rejeitava, fazendo cair pedaços que rapidamente apodreciam, galhos que cresciam espetando a mãe, abelhas ordenadas que se endereçavam aos cabelos da jovem mulher.

Farta, sabendo-se não mais dona de seu bebê, a mulher criou raízes no chão, rasgando o solo e puxando toda a energia da terra, secando assim seus miosótis. Seu corpo se metamorfoseou em casca dura - lascas que normalmente demorariam anos pra se tornarem brutas. Suas mãos se fizeram galhos altaneiros, mas a mulher-árvore continuou seca, sem folhas. Seus dedos de pau fincaram na outra árvore, que aos poucos foi secando também, sendo consumida sua seiva.



O filho, vendo sua mãe em tal esforço, chorou, mas de seus olhos caíram folhas outonais. E foi secando, virando um galho quebradiço e gordo.

A mãe amaldiçoou a natureza.

Levi Trüman

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Celeste

Celeste deu entrada no hospital na quarta-feira pela manhã. Quando seu filho médico deu a sentença, impondo pra ela uma internação, ela pensou que dessa vez ela não passava. Pensou que nunca mais ia voltar pra casa, como sempre pensava quando ia para o hospital. Mês que vem completa-se seu centenário. Celeste não quis festa, nada com tumulto. Pensou num almoço simples com a família, na casa da filha que mora em Duas Barras, numa fazendola bem arrumada. Mas no momento em que adentrou o leito em que ficaria pra tratar pneumonia, esqueceu de almoço, de apetite e de centenário. "Desta vez não passo".
No entanto, com o passar dos dias, foi se sentindo melhor, mais forte e dada aos carinhos das enfermeiras. O esfigmomanômetro que apertava seu braço várias vezes ao dia era como um carinho que não sentia há tempos. Lembrava o aperto carinhoso e sensual de Antônio, seu falecido esposo. Despertou lembranças enterradas e mortas-vivas passearam no seu momento. Sua pressão, com todas essas reminiscências, ficava alterada - o que fez com que Celeste ficasse mais alguns dias sob cuidados. Perguntou à enfermeira, zonza de remédios, se estava com mal súbito. Ao mesmo tempo, ganhava uma força descomunal para uma velhinha de 99 anos de idade. Foi convertendo seu discurso dizendo que ia voltar já pra sua casa. E deu adeus a pneumonia.
No mês que se seguiu, lá estava Celeste, com um século nas costas e lembranças nos sorrisos. Almoçou com a família, ficou um pouco sentada com os bisnetos soltos correndo à volta, imaginando o que seria ter pernas com aquela energia. Parecia nunca ter vivido aquela vida de mocidade. Já estava tanto tempo acostumada à lentidão que, quando pegou pra ver a foto revelada da família inteira ao seu redor, percebeu um tempo parado no papel, reunindo ali ela e sua continuação, colocando lado a lado e na mesma condição de imagem fotográfica, os novos cheios de procura e mistério e a velha, cheia de encontro e sabedoria.

Marcelo Asth

terça-feira, 17 de maio de 2011

Falésia


Do alto de uma falésia, num patamar acima do mar e sob a densa tela do céu que se desdobra além do horizonte se fundindo às águas, uma senhora observa o quadro. É um cenário de placidez estética e parcimônia espiritual. Talvez por isso seja manchado com os tons da melancolia. Seus olhos baixos, subalternos, soterrados em lembranças e molhados pelas lágrimas constantes, deixavam-se levar pelo longe das linhas que compunham todo o instante. Ela era tocada pelo vento e aquilo bastava. 

A senhora se pôs à frente do precipício que se precipitava ao mar estrondoso, quando batia nas rochas que estavam sob ela. Já ao longe o mar se acalmava e trazia um estado de calmaria. Ela começou a pensar-se natureza e viu que dentro dela, ondas batiam muito forte espancando suas rochas. Eram lembranças que iam e vinham, como o movimento dos mares. E essa ação insistente do fluxo marítimo provocava a ela erosão. Mas se ela se olhava para o mais distante que podia em sua alma, onde um horizonte se mesclava com o céu de seus pensamentos, via que ali, longe, porém possível e palpável (já que cabia em seu quadro de visão), um mar sereno merecia uma descrição de lago.

Ela, sendo tocada por este vento, como um maestro de único instrumento, mergulhou seus olhos baixos e tristes no fundo do mar que se abria diante dela e perdeu-os por alguns instantes. Viajando por entre ruas de água e sal e por sua imaginação. Ela perdia-se no momento único e real de ver com os olhos e com o momento ímpar e imaginário de sua alma.

Dentro da frouxa onda que se permite no mais profundo ponto do oceano, seus olhos pousaram como anêmonas a levar-se pelo misterioso. Absorvida pela possibilidade de estar ali, a senhora de fato chorou, mas sua mente compreendeu ser a água do mar que adentrava seu pensamento.

Seus dois olhos caíram dentro de ostras que estavam à espera. E as duas ostras fecharam seus olhos baixos por algumas eras. As conchas, casulos perdidos, se colocaram a trabalhar, a burilar, talhar e esculpir o que depois de tanto tempo seriam pérolas. Na imensidão do mar escuro, os olhos se transformaram com paciência e resignação. Um tesouro perdido como em contos de piratas.

A natureza tomou conta de velar sua tristeza, num porta-jóias natural. A senhora, que esperava por eras com os olhos vidrados e esperançosos, vendo a paisagem que se dispunha à composição e também adentrando seu próprio ser, decidiu abrir os olhos cheios de alma.

Paulatinamente sua pestanas se entregaram ao vento. A velha senhora chorou, derramando pelas rochas um pouco mais de mar, que foram suas angústias. Depois de mergulhar com encanto no seu próprio mar, jogou sua cabeça pra trás, mirando os olhos no sol que ardia em energia singular. Abriram-se as frestas de seu olhar, que viam agora estrias de nuvens brancas, um céu muito azul e uma liberdade que passeava por seu corpo como eletricidade.

Marcelo Asth

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Banquete

Eu me sinto servido agora num banquete, e Platão amola as facas pra cortar meu coração. Eros lambe os beiços de pau duro. De olhos fechados escuto alguém que diz algo sobre a téssera complementar. Procuro minha metade assim que me cortarem ao meio. Já achei. Eu fico com o Deleuze que diz que o charme do outro se encontra em seu ponto de demência. Alguém que não desmorona. E é melhor que seja assim, pois a loucura nos salva. Quem passeia na corda-bamba atirando pétalas para os abismos é detentor da graça celestial. O Roland Barthes me diz tudo o que já sei, mas que talvez não tenha parado pra pensar ainda. Ele põe tudo numa bandeja analítica e me serve o amor fatiado, como aperitivo. E digerindo o que me servem, Foucault brinda a festa com palavras que dizem que "temer o amor é temer a vida e os que temem a vida já estão meio mortos". E Dona Penha, que amou seu marido (agora morto) por tantos anos, sentada na quina da mesa, ainda se vê como no dia em que se casou. Está certa.

Então, fico aqui, parado e deitado sobre a mesa, sorrindo louco, sem temer meu estado de torpor, sem querer me entender. Louco. Querendo que a faca me lamba profundamente. Sirva.

Marcelo Asth