quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Adélia

Falei para Adélia não se importar, que dor passa com o tempo:

- Dor de amor dorme de tanto cutucar.

Ela perdeu o viço, ganhou olheiras e se rebaixou em todos os quesitos. Tinha começado a fazer academia e tinha até comprado um tênis melhor pra isso. Abandonou. Não quis mais saber de nada. Não via sentido e nem tinha força. Simplesmente o seu casamento perdeu a liga. Mas ela ligava demais pra isso, seu marido era uma bengala. Pediu a separação e agora ela nem tinha mais notícia dele. Me parece que ele voltou pra casa da mãe e está ajudando por lá nas finanças.

A vida toda de Adélia era caucada na do homem. Se visitava Marilda (uma vizinha muito gorda e alegre que vive com cheiro de gordura de tanto fritar salgadinho pra fora), ela não se demorava. 

- Daqui há pouco Ivanir tá chegando. Rodou o dia inteiro com o táxi. Aí ele chega, lava o rosto e já senta pra jantar. Gosto de deixar tudo pronto. Ih! E tenho que passar no açougue, Marilda, porque ele não come sem carne. - era um discurso comum.

Adélia ficou sem ir ao açougue por 23 dias. Nem conseguia fazer sua própria comida, porque o calor da beirada do fogão lembrava a comida que ela fazia pra ele. Cortar alho assobiando na pressa fazia lembrar de que o táxi ia chegar buzinando. Adélia não conseguia nem mais colocar a mesa se não fosse pra ter dois pratos. Evitava olhar pra concha de feijão, que ele pegava mais de três vezes pra se servir a cada refeição. Ela deixou de comer e ficou com olhos tristes e anêmicos.

Considerando o status quo da penúria de Adélia, depois de dizer que tudo passa, fiquei pensando no que faz uma pessoa se entregar tanto. Não digo nem em relação ao marido, que isso foi só doença e cegueira comum. Eu penso nessa entrega das pessoas à dor da perda. Ela perdeu o chão e agora anda flutuando. Pra ela o tempo vai passar arrastando correntes pelo chão. Perder alguém, nestas condições mal estruturadas, é perder suas totais referências.

Vão se passar táxis nas ruas e ela vai olhar pra cada um com o coração sobressaltado. Vai à casa de Marilda e não vai conseguir ficar além do tempo. Não vai comer os salgadinhos dela pois vai estar sempre sem apetite. Vai ficar a maior parte do tempo em casa, atenta ao telefone.

"Há dentro de cada dor uma grande possibilidade de mudança", falou a apresentadora finalizando seu programa de reconciliações que passa à tarde na TV. O auditório aplaudiu calorosamente o desfecho. Eu, que estava junto, presenciei os dentes dela que tremiam na boca. Ela não disse nada, mas se eu pudesse ler pensamento, teria chutado que ela pensou "é porque não é com você".

Tomei o café que ela serviu - que estava ralo, uma água de batata, e por pouco não tinha posto sal. Engoli, fechei os olhos, bebi um copo d'água disfarçado e disse que tinha um monte de coisas pra resolver, mas que depois voltava ali. É que eu cansei de ver tristeza perto de mim. Deu um irc. Foi uma desculpa tola quando me deu agonia.

O cachorro de anos, Cartucho, estava já meio abobado, querendo carinho, talvez até com fome. Adélia deu um passa-fora no bicho, me levou ao portão e ficou ali na calçada, de calça jeans e blusa cacharrel mostarda, olhando perdida a garoa que caía na rua de paralelepípedos mal estruturados.


Marcelo Asth

Sáurio


Sobre a prímula, uma solitária gota de orvalho revelava alguns tons de arco íris, prismatizando a luz solar direta. O mato estava denso, verde, como sempre de costume se colore no verão. Uma palheta arbórea, incrivelmente harmonizada. A umidade, pela proximidade à cachoeira, junto ao sol quente de montanha, trazia uma combinação perfeita e ali então se fazia adequado o lar do lagarto, que comia aranhas de vez em quando e algumas larvas gordas que se expunham fartas no mastigar das folhas. 

Pousava o sáurio sobre um galho e parava por ali alguns instantes; seu mundo não se resolvia com relógio, tudo era regido pelo sol. Enquanto houvesse uma bola incandescente incrustada no alto céu azul colonial, refletindo na gota do orvalho, resolvendo a fotossíntese da paisagem e esquentando a pedra pra onde ele ia esquentar seu sangue frio, tudo estava ordenado. Era bom saber-se dono daquele mundo. 

O lagarto, no entanto, soberano na sua tranquila natureza posta, não conhecia perigo algum, nem poderia se colocar como um poltrão desesperado a imaginar seus possíveis fins. De fato existe o instinto, mas ali não se colocava sabedoria que trouxesse a ele um medo pusilânime de fatalidades e futuros desastres. Sua ignorância sobre as possibilidades do mundo não se faziam presentes a ponto de ele se sobressaltar. 

Seu coração ectotérmico - dividido de modo imperfeito em duas aurículas e um  ventrículo parcialmente dividido - não sabia o que era medo, apenas fazia bombear gelado seu sangue. Ele nem poderia também saber das constituições do seu corpo e suas nomeações complexas. Ele só sabia o que era vida. Ele sabia o que era vida? Só se protegeria se algo viesse lento em sua direção com intenções alimentares e isso não poderia ser explicado. A natureza é um mistério delicioso. 

Enquanto ele captava um calor aconchegante da pedra da beira do rio com sua barriguinha pecilotérmica e vida pacata de ser da mata, seu olhar vago via o rio correr apressado, quedando de uma cachoeira pequena (que pra ele se fazia de catarata). Não podemos dizer que filosofava sobre o correr das águas, tendo ali cenário perfeito de repouso e meditação pra gerar o incômodo do pensamento e das rápidas ligações cerebrais que nós temos. Ele não pensava nada, não era dotado da inteligência que conhecemos. Ele era uma programação réptil que se estabeleceu. Digo era porque tudo isto que vem do sáurio é passado. Seus passos se davam rápidos até uma breve pausa fazer um jogo. Andava rapidinho e brecava. Mais um pouquinho e parava. E quando parava balançava a cabeça em sim, como se entendesse tudo. Ou talvez dançasse ao som das águas. Vagueando, andando, existindo, o lagarto largava seus rastros de movimento por uma fatia muito pequena do que entendemos mundo. 

Esta existência toda dele que me fez refletir, este sáurio que a mim se apresentou em pensamento, findou-se. Morreu. Tudo aconteceu quando um pássaro grande, de bico pontiagudo, testou ávido a sua presteza de coração quente e penado. Numa embocadura pequena e cortante, o lagarto despediu-se da vida também sem entender. Ele estava muito parado, mas seu reflexo veio como o configurado. Não deu. Tudo foi um átimo. Ele sabia da morte? Sabia que não seria mais um movimento sobre as pedras, sobre os galhos, sobre as folhas, perto das águas, próximo às gotas prismatizadas? Afirmamos sua ignorância. Ficamos no mistério. Delicioso.

Já a gente se contorce, se imagina, se acovarda, se enfrenta, filosofa numa pedra vendo água que se escorre. Sabemos das constituições. Mas sabemos também vida? Sabemos morte? Esta última certamente não. Provavelmente saberemos morte num instante mágico e ímpar, semelhante ao que o lagarto teve ao se surpreender como alimento. 

Somos alimento da natureza. Somos prismas de luz sob o sol quente que verdeja as folhas e evapora a umidade numa mistura de mil mistérios e movimentos que se dão com o mesmo teor de ignorância que nós e os sáurios possuímos. Fingimos saber. Por mais que possamos pensar. Mistérios são puras delícias.


Marcelo Asth

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Farol

No alto do farol parece que a luz procura algo, obcecada como uma onda de radar que busca rastreando. É pertinaz no olhar do foco, vai varrendo a pele da água. Daqui, há muito tempo, sonho em subir o farol, que fica fincado na Ilha dos Prazeres - este lugar que passei a vida toda observando com afinco, mas que não tinha noção de como era. Eu era como um farol também perdido, querendo entender o código de luz. Ou talvez eu fosse uma embarcação tensa de mar bravio, querendo um guia que me conduzisse aos caminhos aquáticos. Não, tenho certeza de que eu era alguém incompleto.

Foram tantas noites com aquela luz zonza rodando, aparecendo e sumindo, como um vagalume de estrutura duvidosa, que numa noite salgada me pus a nadar no escuro, batendo os pés inseguros e ansiosos de espera, sem pensar, em direção à ilha. Foram muitos metros de cansaço e água salgada entrando no estômago. Sabia-se longe o motivo do meu ímpeto, mas o desejo foi côngruo e apenas apontava pra um ponto. Fui, parando apenas 3 vezes pra boiar por minutos que pareceram eternos. A noite me deu medo; uma paúra que por vezes me desafiava o grito. E também me tomei de lucidez por ter medo, mas continuei batendo os pés, dono do mar. Em soluço e riso.

Cheguei à terra e ainda sentia água. Meu corpo mole esmorecia, mas arfar dava energia, fazia sentir vivo e intenso, na pele. Vigor é percebido nestes atos de coragem, quando o ar quer romper o pulmão mas respeita o elástico tecido. A gente às vezes percebe que se está vivo quando o vento bate nos poros molhados e nos pêlos eriçados de prazer e tato natural. Ainda mais quando uma lua descomunal se põe como testemunha, cigana noturna a decifrar meus pensamentos de amor. Tonteira minha.

Pisei meus pés com decisão, vendo a luz bem mais de perto. Ela rodando, indecisa, desvairada, procurando, buscando. Foi a coisa mais linda que já tinha visto. Passei tanto tempo na praia, do outro lado, perdido, pensando no porquê da luz sem sentido ou direção. Eu também era como aquela luz que visitava ângulos sem entender nada, eu era uma luz solta brilhando. Eu era um grande poste desorientado. Agora eu via um grande poste à minha frente, uma ponta que partia da terra e me fazia olhar pra praia de onde vim com orgulho de vitória. Tanto mar, tanta gota que separava... 

Talvez um faroleiro trabalhasse por ali. E o farol com algumas gaivotas noturnas a enfeitar seu corpo antigo e carcomido de mar! Um velho espírito de praia, beijado na areia.

Assim que cheguei perto do farol da Ilha dos Prazeres, a luz tomou conta do vidro que enclausurava a lâmpada potente e hipnotizadora. Parou de rodar. E meus olhos se tornaram outros dois faróis a focar na fonte de luz que eu via. Não vou mais voltar. Por nada. Aqui. Tudo se tornou brilho. O mar que estava em mim secou e a cara se encheu de prazer e encanto. Minha expressão se tomou de vento e me tornei aquela natureza daquele cenário.

Talvez a luz esperasse por mim.


Marcelo Asth 

sábado, 25 de dezembro de 2010

A escada do sótão

Todo sótão precisa de uma escada pra se preencher. Se não há degraus, não há espera, não há passos verticais. O sótão fica poeira só, sem expectativas de recolher memórias.

É preciso uma escada: caracol, fixa, articulada, telescópica, estilo alçapão, com tampo em painel sarrafeado, acimentada, amadeirada, vitralizada, suspensa por correntes de elos firmes. O que quer que seja. É preciso esse acesso. Porque a cada lance da escada há um esforço pra se chegar. Eleva-se enquanto não atinge outro patamar.

O sótão vazio espera a subida constante. O piso acima do teto, um mundo de não-solidão, é o sótão onde vou me esconder. Sei quem acha rapidamente o caminho.

Escuto os passos que já começam a preencher à princípio com o som. O som do seu movimento. Instalei um sótão na arquitetura só pra podermos viver bem, num tempo à parte. Criei um espaço de prazer pra ler e cantar histórias e estribilhos.

A série de degraus faz ascender o que há de mais esperado. Todo espaço quer ser tomado de liberdade, pôr-se cheio de presença. E parece que quando pisado, o sótão fica iluminado. É como um baú aberto de memória, querendo contar o que já tem guardado. Cada novidade se desvela entre as frestas do chão de lâminas de madeira, que convidam ao recanto o encanto de se receber aconchegante.

Eu planejei este espaço com a mais empenhada engenharia. Você trouxe a escada que o completaria.


Marcelo Asth

Voo

Olha só, vou te contar uma coisa. De uma vez por todas. Não quero nada além do desejo. Eu estou forte como sempre achei que poderia e pleno como nunca soube. Só a felicidade de transbordar-se já é uma conquista pura.

Vou te dizer também que não tenho receios. Não mais. Sem opressão, sem pressão, sem estar errado no mundo. Eu crio o mundo que desejo.

Minha cabeça tá solta, não por ter sido decapitado. Ela tá como um balão preenchido de gás hilariante. Minha voz de pato me faz rir à beça. E tudo à volta é sem temperança. Posso quebrar os vitrais dos alpendres que quiser, sem punição.

Ontem corri às ruas pra gritar o que mais amo. Voltei rouco e satisfeito. Quero um futuro cheio de Marcelidades. Não vou me deixar abalar e isso é uma virtude que todos devem querer conquistar.

Não sou vil, viu? Sou voo.


Marcelo Asth

Boi

Um boi bumbá rompeu meu sonho. Era negro, de chifres pontudos e brilhantes. Festivo, pulante, ornamentado de flores. Seu manto era uma noite estrelada. Dançou por meu passeio noturno e eu não queria mais acordar. Ele me lembrou algo que amo, que já é intrínseco a mim. Ficou ali pulando, seguindo a marcha, o bumbo e os pés do brincante que ditava a música, sorrindo pueril e cheio de um ritmo que me fascinava.

Marcelo Asth

Andrajo

Primeiro ele disse que se permitia. Que era dado à vontade. Observou o que dentro de si proferia pra entender qual rumo novo. Aquela voz taciturna que emergia do fundo de si mesmo, ditou a ele o que não era esperado. À princípio, levantou-se rindo do chão, querendo não acreditar. Mas a voz foi poluindo sua mente, o cenário foi ditando delirante. Zumbidos tronchos, martelando como megafones. A cabeça girando, girando e a voz controlando como a um soldado. Marche.

Eram doze horas no relógio de algum pulso. Ele não contava o tempo. Deixava que o vento e a voz o levasse. Mas agora ela o conduzia por ruas movimentadas, fazendo com que os carros testassem os freios. Ele esbugalhava os olhos, rasgava as roupas e vestia-se então de andrajos. Entrou na fonte de uma praça e ficou ali mergulhado o quanto pôde. 5, 13, 29 segundos. 12 minutos submerso na água lúgubre do chafariz parado. Nenhum transeunte notou. Nenhuma borbulha; o homem parecia inexistir.

A voz então ria e dizia pra ele relaxar. Ele disse que se permitia à vontade. Ela, que antes conduzia-o por estreitas cordas bambas sociais e levava-o do modo mais educado, portando orgulho e docilidade, agora dava uma rasteira no que ele se permitia. A voz não era só voz, era um ele perverso, um ele reverso. Nunca soube poder deixar-se assim e agora era só andrajos.

Saiu molhado do chafariz, bebeu uma cachaça do santo, riu de sua condição. Saiu durante dias andando sempre à frente, desviando apenas de prédios. Se visse rio, estradas, canteiros, passava por cima, por dentro, por tudo, rindo e chorando ao mesmo tempo, como nunca ninguém havia conseguido antes. 


Marcelo Asth 

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Gosto

Eu gosto tanto de você que já sou feito do teu mundo e te sinto necessário. É meu além do limite, uma explosão que me suspende, que me entende, me permite. Eu gosto tanto de você que esses teus olhos me olham e eu grito por dentro. Vibra o amor vindo do centro e emana em ondas um tanto de cores luzidias que se expandem pra vários horizontes. Olhamos juntos, amantes. 

É uma felicidade extenuante poder ter você dentro do meu desejo. Eu gosto muito de teu beijo. Me mostro sem pejo, te lampejando. Eu gosto de tua tempestade nublando meu sentido. Da água que escorre gelada pingando e me faz sentir fogoso. Eu te gosto com gosto, eu te gosto com gozo, eu te gosto gostoso.

Eu gosto tanto de você que eu me planejo pra estar sendo o que você almeja. Quero dar-me de bandeja, hastear-me tua bandeira pra você em mim ventar, tentar só porque você gosta assim. Eu gosto tanto de você que, se estou longe, sigo te imaginando. Quando estou perto, sinto sonhando. Eu gosto tanto de você e gosto tanto de dizer. É tudo simples. Demasiadamente simples dizer. Mostrar é ainda melhor. Eu gosto tanto de mostrar no tato, no ato, no fato, na foto, no suor... eu gosto um tanto de me mostrar pra que você note, pra que você  me adote. Pra eu ser sempre mais forte.

É porque esse gostar tanto me leva a ser fortaleza. Sou coragem e me mostro assim aragem, brando, amando  a tua paisagem. Eu gosto dessa rima toda, boba, acima de qualquer bobagem.

Eu fico aqui gostando e postando que gosto. Eu peito o mundo pra estar no teu peito. Eu respeito a fundo o mundo do teu jeito. 

Note a noite na varanda, ela é toda de arrepios. Vamos sair pelo mundo e preencher cantos vazios. Eu gosto tanto que você me preencha. Eu gosto da tua presença. Eu gosto tanto de você que não me importa ser redundante. Eu gosto de ser redondo, sem pontas, arestas. Eu gosto de me estar pondo nas tuas tontas frestas, te descobrindo, me revelando.

Eu gosto tanto de você que me escrevo por aqui. E me encerro na palavra e dou continuidade ao meu pensamento.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Casario

      Despertei a aldrava do antigo casario - há tempos não era tocada. A ferrugem maquilava. Na grande porta um som oco de eco no além do espaço interno das trilhas de cupim.
        Vibrou em mim aquela quietude antiga e o abandono da casa atendeu ao chamado. Por uma greta próxima ao janelão à direita da porta, espiei um passado que não partia da memória, mas da imaginação. Vi entre ramos de cheflera, a alegria embotada de tempo. Havia um pranto embutido nas paredes que ruíam. Era uma casa de traços tristes que pareciam chorar azulejos de tantos que ali caíram em zonzeio. A casa não pertencia mais a ninguém. Talvez sem dono, aprisionada de um século cheio. Era tudo muito bonito e misterioso visto ali de fora, enquanto esse vento de verão preenchia fugaz o momento em que o pássaro também piava, trazendo um tom peculiar à minha festa de encontro antigo. Meu olhar retrocedeu e cedeu à fascinação do regresso. O abandono me levou.
Tem um portão podre nos fundos da casa. Posso entrar, se quiser. Não posso querer. Em mim não há chave, não há passo. Não há espaço. Um entrave de entrar. É muito mais bonito imaginar um conto por fora, cutucando um reboco e pensando ser um outro, um esboço.
Algum miosótis nasceu - não se sabe por qual motivo feliz – perto da janela em que há muito tempo (imagino eu), foi o quarto de uma criança. Hoje é um senhor morto e o quarto agora é do miosótis, que é efêmero porque é feito de vida. Será que a casa é minha porque sonho? Talvez se abrisse a porta e convidasse o novo.
A aldrava vai ficar pendente na madeira, esperando outra mão anacrônica vir bater à solidão da arquitetura. Todos os cantos das paredes vão estremecer de ansiedade, aniquilando o desamparo inquilino. Eu estremeci quando pisei todas as pedras e imaginei por ali uns passos de solas isoladas por uma barreira da idade. Sapatos que não são mais porque foram comidos por traças e fungos do mofo.
Despertei dentro de mim uma valsa dedilhada só por ver pela greta um piano de canto de sala, decomposto e arruinado nas teclas espantadas com a carência do toque musical. Pensei nas relações da casa com o espaço, as expectativas dos moradores, o que ela servia e de que forma. E o que ela poderia dar a um intruso viajante do tempo. Não quero revolver a terra, desenterrar ossos do passado - de forma alguma. Avisto e penso com respeito. Quero que a casa me dê acolhimento de compreensão, por eu ser como ela. Só de existir ainda firme, em pé numa base, resistindo forte ao esquecimento da função, ela é pura doação e oferta. Ela me mostra um tempo que não pertenci e isso é repleto de magia pra eu entender, ficar me ocupando de inquietação. Uma conexão entre dois pontos que se perdem abstratos. Fiquei por ali olhando horas, sonhando o passado. O incrível não é se perder num resgate. O mais incrível e inominável é entender-se fragmento, uma partícula de tempo incandescente, anelando e nutrindo imagens que fazem a ponte perfeita entre as gerações.
Fui adentrando não só a casa com minha imaginação indireta, abduzido pelas referências que escapavam junto à minha procura. É curioso olhar pra dentro de um casario e se ver dentro dele também, em trajes fora de moda, vivendo vida alheia. E adentrei com sorriso largo a fresta que permitia ver a alma do esqueleto de madeira e tijolo. E adentrei meu peito, inundando misterioso o meu sentimento de fora-do-tempo. É de escandalizar enxergar-se demais.

Minha alma é um casario antigo, empedrado de um isolamento que abrigo na construção.


Marcelo Asth

sábado, 18 de dezembro de 2010

Pontiagudo

                Quando tudo soa como injustiça é porque estamos com parâmetros errados pra se avaliar. Quem somos nós pra maldizer o tempo, se este nos embala quando tentamos entender todo o balanço da nau? Tudo é vertigem, pode gerar vômito, deixar os olhos cansados de instabilidade. Mas isso pode virar dança simples, sem técnicas de passo – aquela dança de inquietação, que faz vento virar a música perfeita pra soprar os passos. E dançar por dançar, mesmo que a sós consigo, por um salão do convés dessa nau. Na popa, de vento em popa, como pipa empoleirada no susto, faz-se a regência do deixar-se levar, distante pra algum lugar que você mesmo se carrega.
                Não vamos entender o interessante, as comoções que inventamos e consumamos pra consumir nosso estado de ser e estar. Não temos o direito de contrariar a saudade, mas devemos olhar o passado como acessamos um retrato. E se a lágrima não escapa, obstrui algum canal da verdade. Mas podem-se deixar as lágrimas evaporarem pra nublar a angústia de uma solidão que dói como faca espetando. Não desembainho minha espada pontiaguda, mas mesmo assim, só de vê-la, grito de dor um berro espancado no timbre. Meu suicídio seria deixar-me levar num rio lacrimal e beber todo o conteúdo pra me afogar em mim mesmo.  

Marcelo Asth

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Lorena

Era mais um dia escuro, como os outros. Lorena marcou com sua amiga de ir a uma exposição de Francis Bacon, sentir pinceladas que eram distantes das que sentia em seu mundo incômodo de ar pesado e sonolento. Precisavam sair às 15h. O pai da amiga as levaria até a porta do museu. Os pingos da chuva fizeram com que ela optasse na escolha de sua roupa pesada e impermeável, fora um par de galochas que quase não usava porque quase não saía. Uma boina de lã talvez resolvesse a liberdade dos cabelos desgrenhados. A chuva em sua cidade era quase constante. As paredes da biblioteca de sua casa guardavam tantos segredos que se continham nas vozes dos outros,  que o espaço já estava denso de palavras lidas em voz alta. Por isso, sair de casa era confortante, pois era preciso respirar liberdade.

Chegou ao museu trajando roupas frias e galochas que faziam seus pés flutuarem quando na chuva. De braços dados com sua amiga, ouvia a guia da exposição discorrer sobre descentralização do real e o tempo intempestivo. Nada daquilo a preenchia. Todos os passos que escutava a sua volta traduziam as várias pessoas que pisavam silenciosas e perplexas diante das linhas coloridas do pintor.

- Vermelho-vinho. –a amiga disse próximo ao ouvido de Lorena.
- Eu me lembro o que é. Diga mais.
- Um rosto retorcido, que parece rir, ou sentir dor.
- Eu também sei bem o que é isso.

Todos viam os quadros com olhos que recebiam os pincéis de diversas formas. Cada um que se põe diante de um quadro traz um pouco da moldura de sua vida e uma tinta de seu significado. Lorena não tinha mais sua visão, mas povoou seu pensamento de linhas expressivas contorcidas na cor do sangue que escutava sua amiga narrar. Viu um mundo que os outros não podiam adentrar.  


Marcelo Asth

Atestado

Recebemos o princípio da alma. Enquanto a chuva lá fora caía, aguardava ansiosamente o toque do telefone. Como não podia mais tocar com as mãos, o toque do som era quase vertigem.  O atestado era claro: três dias de descanso. A alma estava ali pra se prontificar, pra quebrar a casca dura dos labores da transformação.
      E quando passar o efeito do que acalma? O sono fazia carinho nas pálpebras (venezianas que abriam e fechavam como as de casa, protegendo da chuva lá fora); daqui, se protegiam minhas pupilas. Enquanto atravessava a rua, avistou um pouco receosa, um senhor passear com um leão do outro lado da calçada. Não teve medo porque àquela altura, sua vida se misturava com os sonhos e tudo o que desejava sonâmbula era rugir como as feras. Assustou-se com um bruto toque em seu ombro esquerdo. Acordou de seu sonho; era o telefone que a chamava, despertando seus versos. Acionou a tecla do viva-voz e proferiu a interjeição.
    Tudo era uma seqüência incoerente dos fatos e seus passos estavam bambos ainda de sono, mas falava com voz rouca e doída de sensações. Em sua garganta o ar tremia as pregas vocais – simulava um estado mais precário quanto ao que realmente sentia. Lá fora a chuva ainda caía e o vento tremia as fiações dos postes.

      - Quer um café? – parecia perguntar-se a si mesma enquanto via os pingos que partiam desesperados do quadro da janela cinza. O perfume adentrou o recinto convidando o paladar a testemunhar a presença do outro. Recebemos a finalização da alma.

Eleonor Manns

sábado, 11 de dezembro de 2010

Comunicação


        
Vamos lá. Por partes. Quem é você dentro do desafiante esquema? Não é preciso responder, pois todo ser é de liberdade que desconhece. Mas tudo se responde, mesmo que de silêncios amortecedores. O nada é preenchido de qualquer ai.
Busco um interlocutor que não peça entendimento das coisas. Que não meça palavras. Compreensão deveras racional tende a levar ao piripaque. Deverá entender-se tudo e a todos? Piquenique no parque pode ser chamado convescote. Eu quero ter 32 nomes e atender com carisma e sorriso pronto.
Não queira me entender mal, mas não sei me explicar. É perigoso por demais cair da linha do limite. Dizem que se corta muito mais. Mas não faço sentido exatamente porque quero me cortar pra ver onde posso chegar. Cada célula que amalgama a minha goma de ser nuclear, um universo dentro do outro. Um conjunto habitacional de seres loucos em cascas de Matrioskas pintadas com delicadeza. Cada camada maior se sente mais responsável, mais bonita, mais acolhedora.  Qual é a parte maior, a que fica por cima de sua história? Tem importância ser o mínimo? Essa idéia delirante de Deus. Me explica? Hermenêutica preocupação de uma explicação que seja exótica. Pergunta não precisa de resposta – só pra saber.
A palavra, além de som de boca abrindo e língua coreografando ar, é acordo e legitima. Valorosa expressão de acordar. Comunicação é o fato de juntar pensamento num produto que dialogue com o produto do outro. De onde saíram essas grafias e seus significados? Perguntar cansa, dá um enfado, um quebranto de querer pensar. Por isso não preste atenção nesse corredor de símbolos que você entende por estar neste mesmo delírio escritual. Nada tem sentido. Quero inventar mais palavras. Borotista é aquele que framegenta a porujorócura da fipilirena incanscial. E se eu falasse: amor. Você entenderia como eu entendo? Pois é. Crio o mundo que quiser. Querendo entrar, pegue a chave na portaria.
Por dentro de mim, um prédio preto, panóptico, palpando o pilotis. Cada tijolo é um disfarce vindo quente direto da olaria. Alguns peço por encomenda que sejam ocos, pra eu cutucar com prazer na minha arruinação. O reboco, a argamassa, a lajota... tudo é palavra que define coisa de construir ambientes. Moro onde e o que é meu de fato?
Não tenho mais nada a falar. Nem pense em querer ouvir. Minha voz está perdida. Pode querer ser insano e querer soar pretensão, mas é exatamente essa a minha vontade. Inquietação. Vem se comunicar aqui comigo, pra gente não se perder desse mundo estranhíssimo. Estou acompanhado de um só. Mas pra onde fui eu quando estava acompanhado de multidões que lavavam minhas imaginações de luxo? 
Comunicar em comum é vitória pra se celebrar. Uma malha literária, imagética, própria de semântica e visualidade. Uma teia, uma rede, uma malha. Uma veia com sede. Uma comunicação só é falha quando um dos dois diz pra que ela valha. Quando rebate alheia em debate, quando se debate cheia em parede.

Marcelo Asth

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Café da Manhã



Sonhei dia desses (e achei importante registrar) que estava vestido de herói com mais outros quatro que trajavam capas esvoaçantes, botas poderosas e cores de quadrinhos. Parecia ser São Paulo e tomávamos café da manhã no centro da cidade. Uma toalha grande e vermelha era colocada sobre uma mesa na calçada e muitos pães e frutas eram servidos. Daí mendigos se sentavam e falavam de amor, de histórias de paixão, esfaqueamento e perdas dos seres amados. Falavam do que acreditavam sobre se relacionar. Comiam e riam, e nós, heróis, perguntávamos o porque daquilo tudo, parecendo querer entender o amor. Mas os mendigos riam e comiam. Será que eles sabiam?

Marcelo Asth

Calor

Esta canícula que ferve os miolos, que espeta a pele no mínimo, que coça de sal expelido no corpo, que assa na massa que sai pela rua, que sua a sua roupa, que escorre em cabelos e pinica. Toda esta temperatura que temos que aturar é o limite do fogo selvagem de um ar que agarra a gente tapando os brônquios e evaporando em caretas. Um calor que faz subir baratas dos bueiros e faz sair às ruas o povo que não dorme porque, a esta altura, só se sente calor no colchão. Todos pensam em lamber sorvete.

Todos querem chuva pra lavar a gordura da pele e o quebranto que bate com peso sobre o ser. Mas é preciso erguer-se diante do dia, pegar ônibus lotados, pensar em desistir, andar perto dos asfaltos, desejar líquido gelado a toda hora. É preciso também esquecer-se do sol, olhar o mar de longe e fingir que aquilo não traz prazer algum pra quem se desespera ebulindo.

Esta canícula que fica viciada no meu corpo apenas faz deixar o sangue ralo e faz serem úteis as pás dos ventiladores girando eternas com grades de proteção pra evitar que as pessoas acaloradas se joguem em direção à fabrica de vento.


Marcelo Asth

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Arroto

Espero a porta abrir acompanhada de voz e violão, mas só a geladeira produz um som monocórdio que casa muito bem ao tom da luz florescente da cozinha. Dentro do forno, doze pães de queijo são torturados no fogo abrasador. Espero tomando um copo de refrigerante, mas nada me preenche, nem o gás. Volto atrás na lembrança e fico sempre esperando me encontrar, mas nunca tenho sucesso. Não sei onde perdi o fio. Estava há pouco enrolado e comigo.

Abrir o álbum de capa amarelecida. Inevitável relembrar todas as fotos, todas as festas que se faziam no enternecer do entardecer de boas palavras. Mas agora pela garganta passa um arroto, o corpo devolvendo ao ar uma memória gasosa; o copo gelado suando em aconchego na mão direita. Minha boca pende desesperançosa - lábios frouxos e deprimidos. Esse rasgo que parte a carne se desenha em parábola negativa e por trás alguns dentes só pensam em tremer de frio.

Havia muito o que cantar no domingo próximo, pintando quadros se pudesse. Mas de fato, o ato da vida é que se estabelece e ninguém escolhe pra onde se levarão mil barreiras do encontro. Por motivo incerto se faz deserto dentro da condição e é tudo vida, tem que ser compreendido. Regra. Não há nada a temer, só há tudo a tremer. Só há o frio.

Sei que vou voltar pra mim e vai ser lindo. Ser feliz não é apresentar curvas pra cima no rosto em luz. Essa alegria que falta a tudo é produto do pensamento e da liberdade de se voar antes por dentro de si, pra depois abrir asas nas lacunas de uma metrópole, por cima da paisagem da larga avenida.

Quero cantar a sós, mas preciso de quem me escute. Meus ouvidos estão embotados e clamam por sirenes e gritarias. "Vamos romper a casca do mundo e parir sentidos em epilepsia". Digo "vamos" pois me olho no reflexo da janela noturna. O pão de queijo acusa não aguentar mais. A geladeira não é percebida na sua migalha de som. A luz branca e hospitalar me causa um vazio perturbador. A porta não vai mais se abrir. Isso soa tenebroso. 

Sou eu quem sai agora às ruas procurando cantar música só pra mim.


Marcelo Asth 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Tílburi

Um cabriolé de dois lugares cruzou a praça defronte ao Theatro Municipal de um tempo antigo - talvez 1926. Nele vinham Leopoldo e Odalina, bêbados de um amor carioca que ganhava os espaços. O assento era bem moldado e os corpos dos dois tinham um pequeno pudor delicado do toque, mas as intenções eram bonitas e singelas, carregadas de um ardor romântico dos antigos casais. Ela usava um perfume cuja essência comprava numa boutique recomendada por sua amiga de muita distinção, Laurinda. Os efeitos do odor eram aplicados a Leopoldo, que se aproximava galante da nuca da moça. Alguns fios de cabelo dela se colavam suados próximos ao pescoço e um riso de gaivota percorria a trilha de pedras. Ele usava um bigode muito bem desenhado, um chapéu fino e sapatos que lhe davam uma condição superior.

Os cavalos pareciam trôpegos e animados pela noite de veraneio. Uma brisa de mormaço corria pelos cabelos e os relinchos e trotes traziam à cena uma atmosfera de prazer único. O tílburi dava largas voltas em suas rodas e os levava por paisagens que eram arquitetadas de quietude e esplendor.

Eu os imagino neste carro perdido no passado, rodando rodas pelos caminhos do Rio, trocando beijos e farejando o cheiro de dama-da-noite, olhando felizes uma lua que explora sua redondeza branca e ouvindo de longe, no mato, grilos que se somam ao som de um chorinho que se apresenta mais distante ainda.

A partir do momento em que os imagino, eles existem. E ficam perdidos nessa felicidade eterna de vaguear à mando dos cavalos por ruas calcadas de alegria e promessas de amor por toda a eternidade.


Marcelo Asth

domingo, 5 de dezembro de 2010

Movimento

Cai uma folha em apoptose. Despenca-se fabulosa num rodopio dos suicidas que descobrem o poder do ar. É sutil saber-se solta; folha velha, enrugada, amarelecida. Seu outono é cheio de ais. A folha perdura-se no instante e parece dar um suspiro ao tocar tão leve o topo do formigueiro. Cai troncha ao lado de um besouro recém-morto. Um já pós-besouro. Seu corpo é apenas corpo, dura carapaça sem sentido esperando se transformar.
O besouro então se converte na fome de uma civilização subterrânea, de um exército enegrecido que procura intranqüilo nutrir os poderes da casta antenada. Fomentar um formigueiro, dando fome ao movimentar natural de patas nervosas. Dentes, pinças, antenas descobrindo alimento, fuçando, cutucando, mordendo como máquinas. Uma só consciência que se desenvolve dentro da área de terra, cuspindo pontos pretos com vida própria, que mastigam coisas pra funcionalizar seu universo escondido.
Sob a terra, canais e ruas de grande circulação; o besouro já em partes sendo transportado em mil pedaços. Antes duro e agora roído. Já acima de tudo vê-se a coreografia de uma força viva e delirante, um fascinante ritual das pequenas coisas que se organizam nos vulcões de terra que explodem nos trechos terrosos.
Ao lado do raminho de onde a folha se desprendeu (no parapeito do galho alto), outra estrutura zumbe numa comunicação zonza de ziguezagues. Uma grande colméia se prende à grande árvore e tudo se faz maior ainda. No turbilhão de asas que se encostam à agitação do fremir alucinante, um substrato meloso é o triunfo do trabalho incansável. Do lado de fora da casa apiária, muitas abelhas trazem sob a asa os grãos de pólen amarelo pra se fazer a magia diária de fabricação de um mel que o movimento produz. O movimento.
O vento neste momento bate na ponta dos cabelos da grama, a seiva sobe lenta por dentro da casca, o sol bate no verde das folhas que ainda estão por cair.
Daqui, de onde estou - sem ver nenhum destes movimentos -, imagino e recrio com as letras que também se cristalizam a partir de um movimento, cada estrutura destas, enquanto sinto com a mão no meu peito caduco, um coração que bombeia impulsos e se coloca da mesma forma que as formas que imagino.
 Meu coração é toda essa intranqüilidade natural de terra, fogo, água e ar. E toda a falta de elementos. Ele guarda lutos, que são grandes areias movediças que levam para sempre, inexoráveis, o que não pode mais se ter. E também se banha de melancolia, um lodo que faz com que não vejamos o que nos falta.
Mesmo tentando instaurar novas conjunturas pra gerir meu coração, instalar paradigmas e renovar seus padrões, sinto que ele é claudicante e ineficiente no modo de bombear minhas angústias de movimento, que estão no mesmo patamar de uma folha, de um besouro morto e roído, de uma terra que explode, de um ar que abriga, de uma formiga que destroça, de uma abelha que fabrica, de um sentimento que habita sem sentir, sem sentido, sem ter sido convidado a passar por minha veia aorta.

Marcelo Asth

Partículas

Abriu as conchas a golpes descontrolados; todas banhadas de sal. Os cacos esfarelados misturaram-se à areia bruta. O mar inconsciente lambia o chão que se modificava de acordo com a vontade da água de vida própria. Uma onda do mar se faz como quer, pra acariciar peles com suavidade ou pra espancar pedras na erosão teimosa. Uma onda é uma atitude. Uma atitude irrefutável de entender-se soberana, na necessidade de se mostrar desejosa. Cada soco d’água irretorquível esmaga com simplicidade inquieta. A onda é dotada de pureza e bela expressão no que se faz espelho, mas também se veste de mistérios e engole chalupas em alto-mar.
Uma concha é só uma concha, um objeto que se faz criar pelo processo de um enigma belo. O que faz esmigalhar é abjeto, no que se faz retroceder etapas e reduzir a pó. E a natureza não se incomoda com este movimento intenso, e obviamente compreende, pois tudo ela faz reciclar, num eterno jogo nauseante. Um pingo pode ser lamúria ou pedaço de mar.
Dentro do mar ou na praia, as coisas sabem seu tamanho. E o que era concha sabia-se menor, constituído de partículas que se deixavam levar. Toda a água era execrável na sua medida de destruir e acalentar. Gotas possuidoras de vida em movimento. Espanca, mar. Quebra-te, concha. Faz reciclar.

Marcelo Asth

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Blog MORFEMA ZERO

Sobre a madeira do piso deste sótão, deixo em cima de um tapete vermelho o endereço do link do 

BLOG MORFEMA ZERO 

de minha irmã talentosíssima Daniela Asth 
(caramba, que delícia ler coisas muito boas!):


quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mãos de fada



Silvana, mulher viúva, depois de 43 anos de casamento, descobriu-se apaixonada por sua grande amiga Eunice. As duas estreitaram seus laços após a morte de Adolfo - marido de Silvana - e a partir de então se frequentavam quase que diariamente. Moravam próximas uma da outra, numa rua bucólica de casas bem cuidadas. Do lado de fora da janela, as árvores faziam parecer que moravam muito distantes de qualquer burburinho de cidade grande.
Participavam juntas de muitos cursos promovidos por uma ONG que se localizava perto de sua rua. Gostavam de distrair suas cabeças ociosas. Corte e costura, culinária inteligente (onde se aproveitavam cascas e talos para a feitura de massas de pães com alto valor nutricional), economia do lar, artesanato (lindos os portas-jóias que as duas faziam com guardanapos coloridos e colados com habilidade, sem bolhas de ar) e diversos outros trabalhos manuais com passamanaria, rendas, aviamentos e sininhas. Tinham intimidade com tudo que suas mãos podiam realizar. Uma elogiava o que a outra fazia: você tem mãos de fada.
Silvana se dedicava em fazer bolos, trufas de sabores licorizados e caldos bem temperados, que levava sempre à casa de Eunice. Eunice, por sua vez, fazia empanados deliciosos, bolinhos de chuva e empadões de palmito, frango e champignon, que levava sempre à casa de Silvana. Não tinham vontade nem necessidade de fazer para outras pessoas, já que moravam sós e não precisavam vender o que produziam para aumentar a renda de casa (como bem orientavam as professoras). Gorda pensão dos falecidos.
Visitavam-se com abraços e beijos queridos. Silvana sabia visitar também em pensamentos. Não falavam dos falecidos maridos, nem fotos nos porta-retratos evidenciavam uma vida passada. Abriam suas portas, bem arrumadas e cheirosas. E rasgavam elogios junto com pedaços de papel crepom para um trabalho manual de colagem ou folhas de couve pra um cozido que preparavam com batatas bem servidas.
Silvana não entendia muito bem o que acontecia, pois nunca havia sentido essa estranheza que saía de sua cabeça como um alimento quente que sai do forno e espera ser conduzido à mesa pra se degustar. Ela ficava à noite em sua cama, matutando para definir-se, até que entendeu, por sua experiência de vida, que liberdade e vontade deviam andar juntas. Decidiu então assumir-se amando e não sentiu nem um pouco de vergonha quando se olhou nua defronte ao espelho para analisar-se como mulher apaixonada. Viu uma mulher diferente da que se entregou a Adolfo, passadas algumas décadas que agora estavam turvas de poeira. Uma entrega talvez não por paixão, porque este sentimento que experimentava agora era muito nítido e bem diferente daquela felicidade de ver-se casando. Ela sentia-se vigorosa em sua intenção. Percebeu que fora feliz porque havia erguido um sonho ao lado de um homem, sem muito se esforçar. Queria antes de tudo casar de branco, amamentar e aquelas coisas todas de sonho feminino antigo. Teve apenas uma filha (que agora morava num canto rico da Califórnia) e realizou-se rapidamente, cansando-se do sonho antes mesmo da morte separá-la de seu marido. Riu, ainda em frente à sua imagem, lembrando da jura de amor eterno que fez no altar, mas depois parou de rir por respeito. Entendeu também que amou, mas de outro jeito, pois sempre foi muito carinhosa. Viu-se atraente com sua pele pelada e pensou em Eunice de uma forma que não a constrangeu.
Nos dias seguintes, Eunice se mostrava com um brilho a mais em seu olhar. Seus pontos nos tecidos se mostravam muito bem dados e os desenhos de linha que ornavam as toalhinhas de prato eram de verdadeiro primor. Silvana, como sempre, elogiou.
Um dia, Eunice falou com Silvana que precisava compartilhar um grande segredo de confiança pra sua grande amiga, depois de darem um demorado abraço. Abraçar é um ato de se pôr entre braços e os quatro se acolhiam com intimidade. Eunice sorria, percebia-se sem jeito e perguntava se podia falar algo muito confidencial que ela vinha percebendo nos últimos tempos. Silvana gelou-se como em plena mocidade ao lidar com amor. Logo em seguida corou, pediu licença pra tirar um peixe com ervas do forno e, antes de ouvir a confissão, disse que colocaria uma música pra servir o almoço:

- Vou colocar um CD do Ray Conniff. Ou do Richard Clayderman! Esse eu adoro, é romântico... aí a gente conversa almoçando. Tudo bem? – perguntou Silvana com o coração acelerado, ajeitando o cabelo com a mão direita, mostrando unhas vermelhas bem pintadas.

- Claro! Tenho certeza que vai ser um ótimo almoço. Você é uma pessoa muito especial pra mim e quero saber uma opinião sua pra algo que venho pensando...

E assim o peixe com ervas tomou com seu aroma todo o espaço. Uma música melosa batida no piano soou como novidade. Sentaram-se à mesa, serviram-se e conversaram. Eunice, sem graça, disse que estava apaixonada. Silvana ouviu atentamente. Eunice começou seu discurso discorrendo sobre seus anos passados de casamento, dizendo-se não completa, mas sim sempre disposta em servir e ser feliz. Silvana balançou a cabeça, mastigando com lentidão. Eunice disse que precisava de rumos novos, de se doar a alguém de quem realmente gostasse e a quem admirasse, mas que deveria manter segredo por conta das duas filhas que às vezes queriam se intrometer demais na vida da mãe que morava sozinha.

Eunice comia fazendo caretas de prazer:
- Silvana, que delícia! Você tem mãos de fada!

Silvana ruborizou-se, apoiou a decisão da amiga e conduziu perguntas que levavam às respostas de que ela precisava. Eunice então pontuou, após elogiar o arroz com brócolis, dando sua última garfada no peixe delicioso e bebendo a limonada que merecia seu derradeiro gole:

- Sabe aquele senhor alto, distinto, o Cristóvão, que faz dança de salão comigo? A gente sempre se olhou demais... e eu tô apaixonada! Ele me pediu pra jantar com ele. O que você acha?

Silvana sorriu belamente (porque havia aprendido assim) e disfarçou seu desmoronamento com destreza:

- Ame, minha amiga. Ame. – disse, apertando com força sob a mesa a ponta da delicada toalha rendada que havia estendido para servir.

Marcelo Asth