domingo, 31 de outubro de 2010

Vassoura


“O que me diz sobre romper barreiras fantásticas e invadir a casa de uma bruxa um dia antes de seu aniversário?”. Ele me diz: “sim, por que não?”
Por nos dizerem que elas estão soltas por aí, nem nos arriscamos por invadir – a porta estava aberta e nos convidava. Mas, por surpresa, só de olhar pro umbral da pequena casa branca, sugestiona-se que uma energia nos seleciona e, de modo rápido, somos absorvidos pra outro estado quando adentramos seus cômodos escuros, porém, nada sombrios. Pois são tomados de uma quietude noturna e bela, um à vontade com somente a luz da lua, porque esta é lâmpada num céu que figura como uma mantilha onde se estendem e cruzam vassouras enfeitiçadas. Não vemos.
Um pouco de sujeira pelos cantos e frases escritas na parede. Não lemos os significados. Não nos vemos. O mato que circunda o lar nada macabro é cauto em nossos passos e o lar é íntimo, pobre, porém puro convite.
Esta energia que nos selecionou nos suga com pujança como cobras endoidecidas. Talvez tenhamos nos transformado (por alguma feitiçaria de proteção), mas nem percebemos. Se foi, de fato, descobriu-se a experiência.
Não somos mais nós que nos conduzimos; é esta força. E é ela quem nos leva, quem nos enleva, nos eleva, quem nos rima na treva que faz sentir na colisão as paredes que viram camas. Sentidos invertidos, sem medo de se pecar. Ritual.
Nossa mente desperta e nos apertamos nos cantos que, de repente, não são mais sujos. São nossos. Tornam-se jardins. Com magnetismo e magnitude, um quarto nos chama sedutor. Adentramos, rimos, iluminamos. Nas paredes vimos imagens nuas e nos sentimos assim também.
“Alvitre ao catre” – uma voz repetia como um mantra. Foi coisa de bruxaria, não das más, mas das que não hesitam em fazer feliz quem se seleciona.
As vassouras cruzam o espaço arredias. Varrem noites tresmalhadas. Um vento bate e entendemos que seria bom sair dali. Podem nos varrer e, por respeito, resolvemos pisar o terreno externo, que é comum a todos. Lá, observando as cruzes espetadas na terra e resquícios de fogueira, continuamos imbuídos a nos dedicar alegria. Nesse lado de fora, vimos sapatos subindo as paredes laterais.
Amanhã a bruxa aniversaria. “Viemos até aqui pra pedir conselhos e ela deve estar à caça de corujas para seus preparativos”. Não duvido que ela soubesse da visita; uma visita nunca passa despercebida. Então, como cobras, rolamos os dois verticalmente para baixo os degraus inclinados de sua escada e sorrimos anormais.
Outra voz que se confundia entre as árvores gritou com traços de escarro: “Vem voltar querendo assim”. Essas vozes não sabiam mais se eram reais ou de ilusão, mas uma que findou nosso tropeço do último degrau da escada foi a mais curiosa, porque, com prazer, se dizia grata pela energia que foi largada no ambiente da casa: o último ingrediente que era preciso pra formular sua poção da efeméride.

Marli Gadot

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Sol


Rabisquei um sol num papel porque me foi pedido. Depois de pronto, fez todo o sentido. Tudo se aqueceu chispante, em pleno fulgor, no calor dos teus raios. Me queimo. Exposição ultravioleta, ultracarinhosa. Por dentro, o coração se enche de chama. O sol lambe minha pele e diz que está aqui comigo de volta.

Marcelo Asth

embrulho






Carnaval de São Vicente.

¹²³¹²³¹²³¹²³¹²³¹²³¹²³¹²³¹²³¹²³¹²³¹²³ e já... caré, carência, ciência. Já na minha companhia.

18:19 - depois vem vinte. Adivinho o tempo, o tenho nas mãos.



Meus amigos estão batendo palma, como se fosse a primeira vez que eu andasse. 


Toalhas de prato, sofás de 2 lugares, a gosminha amarela que fica em cima do pão doce, strogonoff de palmito, o balanço da árvore da Unirio, orgasmo espreguiçatório, orgasmo espirratório, o normal também, faróis traseiros de carros à noite, cheiro de madeira antiga, maxixe, romantismo, fotografias, transgressões, personagens lúdicos, dados, madrugadas de inspiração, pipa na gaiola, acarajé, shampoo, elogios, saleiros de plástico, arte em geral, o amarelo de Van Gogh, artigos de papelaria, sorvete, design, guarda-chuvas automáticos, lembranças olfativas, lembranças afetivas, sacolas ao vento, gás do refrigerante, pimenta, colocar bolinha de pêlo na testa de bebê-soluçante pra parar, sempre olhar pro relógio na madrugada e ser 1:23, estalar a coluna e os joelhos, olhos mágicos de porta, "Marcha Fúnebre" de Chiquinha Gonzaga, fazer amizade em sonhos, sonhar que estou voando ou levitando, suvacos, sapatinhos de criança perdidos na rua...

a pilha do coelhinho batendo o tambor está fraca. Mas eu acabei de trocar.

Cagarras, vontade de ir ao Maracanã, sol lá fora, aqui frio, descobrir ruas e caminhos, chaminés fálicas, faíscas na palha. 

eu não estou acostumado, não estou acostumado, não estou acostumado, não.

queria ser o que quisesse, mas parece que quero demais. 

eu tô doido pra ir embora, em boa hora. O Bêbado e o Equilibrista - virou música de churrascaria.

podia alugar um lugar, comprar panela, esfregão, pano de chão, escova de dente, flanela, fronha, um pacote grande de macarrão e me isolar do sistema solar. Aí eu ia decorar texto pra fazer a peça. A panela de pressão só chia, só chia, chia só.

cansado de mim. imagina o que você pensa, ser criança é melhor ainda. 

vou encher a vida de sucesso. trabalhar dobrado pra ser teu dobrado. 

Me embrulho pra presente.
Pro presente.
Não preciso ter nexo no isso. Ainda estou pra nascer. 


3décadas

Eu preciso de certeza e quero ficar em silêncio. Eu me esforço tanto. Queria me calar por 3 décadas só pra ver o que muda em minha face. 
Prometo raspar os cabelos a cada fio que aponta. Preciso morrer devagar, lento, se não vejo tua inclinação. É claro que você não pode pular da ponte quando há um jacaré boquiaberto com a tua dúvida. Ilusão. Permanece na pinguela, enquanto enfio a faca no peito duro de réptil. Depois chora, por favor.
Vou revolucionar o estado do riso e gargalhar metralhadora na minha besteira.


Lará-Larí - Marli Gadot


Minha boca de pedra, itajurú, vai abrir teu canal de passagem pra navegar. Por teus seis quilômetros medidos pra escorregar, querendo a aurora primeira, bebendo sedento de água. Do topo da Dama Branca você cumpre a natureza extrema e me lança um pensamento pra eu seguir por teu canal. Faz um sinal extraterrestre. E te conheço bem por eu estar aqui, no mesmo vento que te ensinou a cantar por aí. Lara-Larí. 

Marli Gadot

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Masmorra - um conto de nadas

       
      Erra uma vez um menino de corpo torto que decidiu ser feliz depois de sair da masmorra. Mas morreria mais tarde por não saber como andava o mundo. Ele andava como um pombo - uma estrutura imbuída de solavancos, denunciando um sentido opaco. Por onde percorria o espaço com seu passo tolo, o mundo ria de suas tentativas. Parecia dança se não fosse tristeza cristalizada e pressões que modificaram o corpo ao longo da memória trancafiada. Só o rosto era bonito, mas o rosto é o resto do corpo. 
     Ele andava em diacronia quando se pôs à beira da terra e ali sentiu um furacão de liberdade invadindo o seu deleite. Ali não havia mais riso dos outros, estava distante do que era mundo. Uma fada (ou nada, porque ali na beira tudo podia se dar como delírio) assobiou pra ele ficar na espera. Então apaixonou-se profundamente pelo fundo do abismo e por ali se instalou feito árvore. Parece ter se enraizado profundamente no último passo de terra do precipício. Naquele ponto passava seus dias e noites inventando palavras pra descrever o que era ser feliz. Ele gritava bem alto pro abismo e o eco até que respondia, mas monossilábico. Aquilo era tudo!
    Depois de dias, dias, dias, dias, dias (que contando não foram tantos quanto ele pedia), ele percebeu que outros, outros, outros, outros, outros chegavam mais perto do abismo, essa sua casa de terra. E vinha do mundo um coro de eco, de riso, deboche e escracho. 
     Notou que suas palavras inventadas pegavam o vento da curva e paravam nos ouvidos das aldeias. Uns vinham apenas criticar, mas por surpresa, viu que também vinham mais outros, mais lindos, mais inspirados e mais soltos, também querendo na beira morar. Pra ver o fundo profundo. E foram esses outros começando a infiltrar raízes quando o menino de corpo torto, já com aspecto de árvore cascuda, não conseguiu prender-se mais ao solo. O momento foi de uma tristeza tão profunda que ninguém percebeu. Um erro. Ele não aguentou, também porque ventava um absurdo. Desprendeu-se de pequenas bolotas de terra, com as raízes sujas que nem mais via. E apaixonado pelo fundo do abismo, olhou com pena se sentindo fracassado por não ser proprietário do espaço que escolheu pra ser feliz amando e pra inventar palavras de expressão altaneira. Lançou-se à queda sombria do vazio, não ponderando o instante. Bateu um fracasso que só vendo. E em solavancos, se desprendendo (enquanto o mundo se calava assustado), conheceu de fato sua liberdade, maior do que aquela de sair de uma masmorra antiga. 


E morreu triste e feliz para sempre.


Marcelo Asth

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Recôndito - Marli Gadot


No frigir dos corpos, as almas dão impulso pra se encontrar, mas há um muro de carne. Daí bate um desespero e os corpos frigindo dão iguais impulsos de encontro, com complexidade corporal e com o uso de palavras sonoras. Porque os significados delas não são nada e nem precisam ser, apenas o som que explode nos pode instalar a impressão de quem frege. Ficam perdidos, colidindo membros e peles suadas curiosos de labirinto e, buscando no mapa da pele, a alma se escapa um pouco, visita a outra no corpo alheio. Com muito prazer e tanto fluído, as almas se unem em energia solar e os corpos se adormecem azoinados em letargia, extasiados da completude e da identificação de névoas e borrascas antes longínquas. E todo esse estado leva a lentes prolixas, de tanto encontro, pois tudo fica em compreensão rebuscada, como apenas palavras sonoras. Daí se estende um campo verde sob a cama, nascem as flores que o outro mais gosta e um vento que não é frio nem quente - que apenas movimenta o silêncio – instaura um vácuo profícuo. Sonham entranhados e realizados de pureza. E tudo fica inócuo, rodando, rodando em espirais que transbordam caudalosas e abusadas, provocando redemoinhos e tsunamis que afogam impiedosas quando cada um corta um caminho recôndito. 


Marli Gadot

Pálida - de Tavito e Aldir Blanc


(só começa depois de 1 minuto de lero-lero)

Eu andei a vida inteira assim
Cintilando em despedidas
Meu buquê de sempre-vivas
Ou de margaridas num eterno adeus
Sensitiva, crio talismãs
E não perco a alegria
Canto como um passarinho
E, se o ar me falta,
Compenso em carinho
Toda feita de nuances
Morro como as flores dentro de um romance
Pálida, cálida, angelical.
Gosto de brincar, tranço de luar
Mortalhas pro meu aconchego
Pois morrer mais cedo é um jeito de pedir ao medo
Pra me dar sossego

Passa da meia-noite
E eu sonhando vou decifrar
O que as constelações
Escrevem na escuridão
Lá do balé da luz
Vejo meu corpo adormecer
Cansada, só volto a mim
Na estrela do amanhecer

Sei que vivo de morrer
Por ter outra idéia na cabeça
De tanto brincar com a morte
Pode ser que a sorte canse e me esqueça.

domingo, 17 de outubro de 2010

Visitas


O sofá novo no vinho, na intimidade de um lar vizinho, de plantas na janela e rostos desconhecidos. Mas do que importa se todos riem e falam de amor, morte e dor cheios de romantismo? A mor te ce dor – o jogo de palavras que você assim me ensinou, sorrindo. Não sei mesmo se sorrindo, mas com alguma coisa que não tem nem nome pra se explicar.

Um carinho no braço do sofá, no couro novo, no vinho. Visitas. Perdemos uma hora de nossa vida nova pro horário de verão e nem nos importamos: sorrimos com o tempo nos cobrando. O tempo heterogêneo da mastigação alheia. O oposto da degustação da maçã e da aveia. E também chocolate, latindo endorfina, um violão na mão e vozes finas.

Na sala, quase ao centro, um par de belos jarros com arranjos de cheflera, simples e perfeitos, cabia-se num enquadramento de inusitada composição. Todos admiravam, alcançando nossa compreensão estética e além da imagem. São dois arranjos de composição conceitual. E dessa intimidade de arranjos, acordes e tonturas lépidas, o sangue subindo, descendo, circulando intenso sobre cada pensamento, vimos momentos com prazer e familiaridade. O vinho ajudando a compor beleza, fazendo cuspir o francês decorado de uma canção e as mãos se procurando num carinho da estação. Visitação.


Marli Gadot

sábado, 16 de outubro de 2010

Bolha



Essa coisa toda de ser peixe. Bolha de ar. De olhar espantado esperando ser fisgado. E toda a água que acaricia, permeia e leva, todo o brilho de um sol em cada cama de escama. Essa coisa toda de abrir a boca lenta e nadar o sinuoso rabo envolvente por uma rota indefinida e livre, de água. O som é de ar no silêncio submerso. Bolha de ar. Essas borbulhas esbugalhadas que são os olhos de quem se fascina. E se debate todo e pulsa as brânquias sem ar quando é fisgado. E escorrega, se mexe, salta, como essa coisa toda de peixe que nada aqui dentro.


Marli Gadot

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Estalo


Foi só um estalo nosso e todos os pássaros denunciaram festivos. Fofoquinha de passarinho, felizes voando. Daí um gritou pro outro pra ter respeito e coroar a ocasião. Daí foi um falatório de ave e você suave piou, fez o som do passarinho e ouviu o que eles cantaram, distinguindo como um sábio aéreo. Conversou com intimidade e me passou a tradução. Eles falavam qualquer coisa e você reproduzia. Com olhos vivos de passarinho. Entre árvores voavam passarinhos matutos; disseram pra ficarmos em paz. E eles se recolheram como todos os da rua. Ninguém via a nossa folia, todos cegos andarilhos. E estalando pelos trilhos, voamos ventos volitivos.


Marli Gadot   

A Chaminé Centenária ficou firme e salvou da morte várias pessoas


"À cerca de quarenta metros do sopé do morro da Babilônia, numa pequena planície entre as ruas Xavier Sigaud e Lauro Müller, na Praia Vermelha, existe uma antiga chaminé, que pertenceu a um engenho açucareiro que deixou de funcionar em fins do século passado. Do velho edifício não existem vestígios. Há uma pequena base de pedra, e o corpo da chaminé é de tijolos refratários e tem 20 metros de altura.

Escada de ferro

Por dentro existe uma escada de ferro pela qual se pode subir até o topo. Para baixo, há uma entrada que da para um túnel misterioso, que se bifurca depois de percorridos 10 metros. Há pequenos aposentos, onde ainda são encontradas algumas correntes e vestígios de caixas de dinamite. Ali eram guardados os explosivos usados para a dinamitação do Morro da Babilônia, por uma companhia de pedra britada que teve instalações no local.

Os Túneis

Os misteriosos túneis continuam e não se sabe até onde chegam. Alguns moradores acreditam que uma das ramificações atinja Copacabana. A construção data do primeiro terço do século. O Morro da Babilônia sofreu dois graves deslocamentos de terra, por ocasião do temporal da semana passada. Um deles foi em direção a Rua Xavier Sigaud. Matou duas pessoas. A base da chaminé foi atingida em cheio, mas nem se moveu. Não existisse ela, a sede do 4º Distrito de Obras teria sido inteiramente destruída e mortos os funcionários que estavam trabalhando. Mesmo com a interrupção da força destruidora da avalanche, o impacto destruiu duas colunas da sede do IV DO. O primeiro andar ficou soterrado e os funcionários saíram correndo do local, pelos fundos. Para essa fuga foi necessário abrir passagem pelas paredes.
A chaminé, no entanto, já está firme e segura, parecendo retratar o espírito do povo carioca, que atingido pela maior catástrofe do século, permanece imbatível.

Firme, como o espírito do povo carioca, a velha chaminé continua altaneira e recordando a época em que a Praia Vermelha e Botafogo eram importante centro açucareiro."

O GLOBO - 19 de Janeiro de 1966

um tanto de açúcar.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Transformação


Ele podia romper os seus domínios e subir prédios pelos vidros exteriores, fixando suas ventosas pelas janelas, apresentando sua língua de salamandra, seus olhos de pestanas líquidas e íris espantadas. Ao cansar-se dos gritos de dentro dos prédios, podia rasgar sua coluna e presentear-se com asas de libélula. 
Daí podia voar e ver tudo distante num refúgio e pousar num rio com a densidade certa pra andar sobre a água. E ao cansar-se de equilibrar seu peso, podia adquirir escamas e brânquias repentinas, modificando-se num ser próprio da corrente aquosa. 
Daí podia rolar por pedras de limo, mastigar algas verdes, saltar só pra espirrar pingos e adentrar por um segundo um mundo de ar. Ao cansar-se podia voltar a ser homem, no momento da cascata. E tropeçando com um pé inábil na última pedra antes do abismo, com toda a força da corrente, podia saltar gritando de desespero e entender que mesmo caindo do jeito que era, continuaria se transformando.


Marcelo Asth

Afresco


Fiquei pensando: se a gente tivesse um lençol amarelo, viveríamos o beijo de Klimt no meio daqueles quadros todos que pintamos no teto de nossa capela noturna. O espelho rouba intimidade e devolve clareza, emoldurados no sonho. A luz se faz conforme o desejo da pintura e há um altar sob o púlpito, onde ao orar tropeçamos lindos. 
Precisamos misturar as tintas e aplicar todas as técnicas de beleza artística pra sobreviver nas imagens que criamos com inspiração, pois somos modelos vivos em ação contínua. Estudamos as formas de nossos músculos e as expressões mais bonitas.
Que belas artes de perspectiva infinita! Espelho reflete o outro, que bate no fundo de um escondido e você me vê num canto do teto como lagartixa. Aproveita e pinta.
A abóbada é o céu de estrelas, mas sob isso tudo está esta festa toda de movimento fluido que se instala nas paredes de esboço e tinta. Paulatinamente manifestamos toda a graça dos pincéis e concretizamos aéreos nossos enternecidos painéis de espelho e delicadeza.

Marli Gadot   

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Mar de Garrafa



Mar de Garrafa


Essa gente brinca porque se inventa. Pra que os momentos todos sejam diferenciados. E dali surge um tanto de músicas infantis a partir de falas desprovidas de significado. E mais ele do que ela canta com uma voz doce e fina repetindo a última frase dita no espaço. Dançam apenas pela brincadeira.
Contêm-se no desejo, mas mesmo na rua debocham da normalidade, acariciando as peles. Lá vêm os dois tontos de mar, caindo sempre numa cama barata com cheiro de maresia. A maresia é uma névoa de átomos e sais, suspensão do caldo rico do mar. Enferruja as âncoras abandonadas e faz trancar portões de outros tempos. Tem locais em que come tudo, gulosa. Mas pra eles nada disso importa, pois o perfume do ar é de um sabor de néctar salgado que abre todos os tipos de apetite.
Um marinheiro e sua dama do porto. Ele havia passado uns tantos dias no vai e vem das ondas e agora se refugiava no vai e vem das coxas dela. Brancas. Ela havia vivido tanta ansiedade no vai e vem da espera e agora se abrigava na luta que os corpos faziam.
Se ganham e se perdem num embate. Empate; patusca empatia. Riem de doer as barrigas inquietas. O sangue aferventando e os poros se abrindo. Que deleite é querer.
 É preciso rasgar lençóis ordinários, cuspir nas paredes, gemer de delírio e esquentar os tijolos do quarto, depois de quebrar as lâmpadas e uivar para a lua. Os dois cumprem-se na irrupção da entrega relevante, fruindo saborosos. Todo aquele gim, um resto de uísque, charutos da marca Henry Clay vindos da Birmânia e toda aquela marra, toda aquela amarra é de se amar no encontro do par. Nó de marinheiro e bússola de navio.
Resolvem sem pressa e em rebuliço, quando se dão ebulindo, tateando, tatuando mordidas, mapeando, lambendo e sorrindo embebedados de alívio. O sol se vem explodindo de quentura e enquanto ela dorme (ainda gemendo), ele se lava e se veste automático. Pega uma dessas garrafas que os dois quebraram na madrugada e leva com ele. Vai embora e ela acorda. Ela sabe que ele volta depois. Ele enche a garrafa com uma porção do mar e bebe pra se despedir da terra. Mais tontos dias de água...
Não ouvi tão bem porque ele estava mais distante (já depois das ondas), mas acho que cantou com voz doce e fina a frase "presentificando a madrugada a cada segundo". O cheiro que fica na mão dela traduz toda a euforia. Horas com a mão em concha próxima às narinas, respirando a felicidade, uma lembrança olfativa. Toca-se ao acordar com aquela mão de vestígios masculinos. Depois se cobre com as vestes sujas e rasgadas de ontem, pega outra garrafa e vai até o porto enchê-la com outra porção de água. Bebe o mar engarrafado e soluça uma solução salgada que beija o navio do seu bem que lá vai embora e sabe-se já que volta.

Marli Gadot

domingo, 10 de outubro de 2010

Meu nome é


Gal


¹²³



Eu não posso culpar o som do ventilador e suas pás rodando. O problema está em mim por estar ventando, com as pás internas rodando, rodando, ao máximo. A energia uma hora acaba. Ninguém está com calor. Aliás, a sala está vazia.

Meu nome é... diga o seu nome. Após o sinal deixe seu recado. O sinal está amarelo, mas logo-logo está fechado pra nós, que somos jovens. Agora deixe o seu recado. Nossa, que frio. Vou desligar o ventilador. O som já foi decorado pelo cérebro pelos próximos 6 meses. Serão 6 meses ventilando ainda por dentro, com as pás batendo nas costelas, cortando o ar. Eu não posso culpar a energia de estar acabando. Dei curto.

Reciclagem


RECICLAGEM

Por que meu coração de sucata bate descompassado por conter um furo na parte de pet? Talvez um lixo a mais pra um arremate, um retalho de pneu. Mas o meu, o meu coração de sucata pede. Pede pra bater nele porque está desorientado, quer acordar. Porque ele bate surdo e sozinho, o seu som não está sendo escutado. Ele se desesperou esperando bater música, mas agora a única solução é a gasolina e a faísca do fósforo. Química. Já viu como o plástico derrete bonito? Pirofagia já.

Daí vai bater um samba burro que vai ficar na cabeça do povo. Enquanto todos atravessam as faixas de pedestre, a música vai grudar feito chiclete nos problemas de cada transeunte. E todos vão pisar as listras brancas cantando minha ilusão. Um uníssono que incomodará a você, que não gosta de samba burro. Se eu tivesse um chiclete agora, tapava por um pouco só o furo da parte de pet, pra poder respirar um pouquinho com alívio, sem escape.

É interessante que não filtra sangue; nele passam aqueles vermes gordos do lixo e o costumeiro chorume. O choro me acostuma e eles passeiam. Eles apreciam mastigar a rejeição mal comida. Sístole e diástole mal engendradas. Não dá pra me reciclar. O lixo é todo misturado demais e não tem ninguém com luvas espessas.

É tão engraçado sonhar. Esse mundo não me pertence. Eu pertenço a ele numa discrição que me dá enfado. A prudência e o recato serão meus amigos e me darão as mãos, mas mesmo assim meu furo continuará soprando vazio de ar as últimas palavras suas.


Marli Gadot

sábado, 9 de outubro de 2010

Hilda Hilst, do amor contente e muito descontente - nº12



Quero que Hilda se aconchegue num recanto deste andar. Gosto muito dela. 


"O tempo é na verdade o do retorno.

Pensa como se agora fôssemos argila
E estivéssemos sós e mudos, lado a lado.
Por um momento (se viessem chuvas)
Talvez se misturasse o meu corpo com o teu
E um gosto de terra úmida aproximasse


Brandamente
As nossas bocas.


Que seja assim lembrada a tua ausência:
Como se nunca tivéssemos nascido
Sangue e nervos. Como se nunca tivéssemos
Conhecido a verdade e a beleza do amor.
Pensa como seria se não fôssemos.
E não houvesse o pranto, o ódio o desencontro.
O tempo é na verdade o do retorno.
Se não for amanhã, será um dia.
O céu azul e limpo, o mar tranqüilo
Pássaros e peixes, pássaros e peixes

Mais nada."



Hilda Hilst

Os dragões não conhecem o paraíso - Caio Fernando Abreu

Não me importa o tamanho desse dragão que aprisiono aqui no meu sótão. Caio me entregou ele agora:


Os dragões não conhecem o paraíso



Caio Fernando Abreu




Tenho um dragão que mora comigo.

Não, isso não é verdade.

Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.

Isso me pareceu gradiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez daquele dia.

Estou me confundindo, estou me dispersando.

O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.
Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada.

Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentado no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para se transformar numa grande chaga.

Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.

Ainda não comecei.

Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.

Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões.

Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a, nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.

Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se tivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.

Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinho banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quanto você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.

Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quanto ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.

Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quanto perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível".

Ele gostava tanto dessas palavras que começam com in - invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias.

Ele cheirava a hortelã e alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.

A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê sonhava com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quanto deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos muito largos conseguem.

Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.

Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quanto lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber porque, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que os espaços ficassem mais bonito.

Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado.

Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Pergunte o nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quanto sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim.

Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ira ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.

Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou fumaça de suas narinas, sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dias após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas.

Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Ele não compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você compreende?

Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?

Não, não é assim. Isso não é verdade.

Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estreiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumaçam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso igual ao direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.

Quando volto a pensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz.

As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.

Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe.

Nada, nada disso existe.

Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:

- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.


Não, isso também não é verdade.