segunda-feira, 28 de março de 2011

Espera

Sem ele não havia razão alguma pra distrair-se com passos. Tudo o que lhe apresentava o mundo tinha uma carga de estranheza se não fosse com ele. Seus passos ficaram domesticados, acostumados da sombra do pé do passo dele. Por isso, ela não mais dormia direito se não fosse face a face com ele, não fazia almoço se não fosse pra ele comer, não se masturbava se não fosse para o prazer do outro. Ela atingiu o auge da paixão, o extremo quase inalcançável do sentimento. Ela perdeu sua vida ao encantamento alheio.

Ficava sentada no sofá, vendo imagens que engolia sem mastigar. O som penetrava seus ouvidos, mas ela sempre lembrava da intensidade das palavras dele e ficava achando que o mundo não fazia mais sentido algum se não fosse ao lado dele. Era uma tristeza imunda, de lama que atola, de areia movediça que engole sem deixar chance de escapar ilesa.

:

Ele voltou do trabalho e ela sorriu. Depois amaram-se nos lençóis.

Marli Gadot

domingo, 27 de março de 2011

Fotografia



Quantos anos se passaram até o momento em que, de forma especial, Agenor olhou o espelho com saudades? Uma fotografia olhar pra si se entendendo. Passara a noite inteira chorando e dizendo "você é a flor do meu jardim, não me deixa, não" e acordara com a filha e o genro batendo cedo à sua porta, com a notícia "pai, mamãe morreu". Havia deste momento de reflexo e reflexão no espelho, um longo dia de suspensa realidade, de memórias que nem conseguiam chegar, de uma alma enganada, não entendendo ainda o caminho de solidão à frente. Um dia de luto sombrio, de vestir-se de preto para um evento fúnebre, uma entrada num palco vazio de um velório cheio.

Denecir ficou 28 dias no sono pesado do coma, induzido e agoniante. Seus pulmões eram inflados por uma máquina hospitalar que faziam com que ela parecesse feita de brinquedo. Agenor não podia levar flores porque, apesar de bonitas, eram proibidas no ambiente hospital - possíveis bombas de infecção. Todo dia seu encontro com a esposa era mediado por enfermeiras, a filha ou um neto ou outro, além de um relógio que demarcava a aproximação dos dois amantes. Os limites do tempo são implacáveis. No momento da visita, chegava perto do corpo estranho da mulher que conhecia com intimidade e experiência, e se surpreendia com a vida que se mostrava de forma tão viva diante dele. Não pensava na morte, porque essa era já quase certa e inevitável para o momento; não se iludia com esperança. Pensava na força da vida, inédita a cada segundo, incerta em sua totalidade, que fez com que a esposa amada deixasse de ser aquela menina de 16 anos e jeito delicado, a mulher que ele amou na noite de núpcias, a mulher que amou quando deu à luz aos filhos, a mulher que se dedicou em tantos capítulos de uma história potente. Transitoriedade. Era o momento de virar as últimas páginas do livro. A mulher que ele via à sua frente era mais viva do que nunca porque vinha se transformando com a vida. A causa deste instante era passar pela vida sem precisar o mistério. Para todos os efeitos, a despedida lenta e inevitável marcava o pulso do seu coração num tempo da matéria. A pele flácida, o corpo branco, os cabelos pintados com as raízes também brancas e reveladas. Toda essa impermanência que se sabia finda dentro de algum tempo futuro. Um carinho na mão inerte.

Diante do espelho, Agenor pensou em ser forte, mas desistiu num átimo por achar mais interessante ser vivo também. "Não é preciso ser forte", falou sabendo-se sábio de tanta experiência. Deixou que seus olhos fossem fracos até se esgotarem de lágrima. Ficou olhando para a sua imagem fixamente, mas sua esposa não se encontrava ao lado - como no porta-retratos acima do console da sala. E nunca mais se reproduziria a fotografia que ali marcava a eternidade de sempre.


Marcelo Asth

sexta-feira, 11 de março de 2011

A viagem de Alcemira



Alcemira decidiu ir com sua filha para a serra, visitar Neinha. Como não gostava de viajar, por ter medo de estrada e não confiar em ficar sobre rodas velozes, Alcemira estava nervosa pelo evento. Acordou cedo e passou o dedo indicador nos olhos pra retirar o excesso de remelas, já que andava com uma doença nos olhos e lacrimejava muito ultimamente. Olhou pra uma malinha modesta que havia arrumado na noite anterior e se lembrou num susto que ia esquecendo o terço. Arrumou-se, tomou um café-com-leite com biscoito maizena e começou a se preparar para a viagem. Passou um fio de água num pente fino e delicadamente penteou seus cabelos para trás, prendendo-os por fim. Sua filha, que morava duas ruas abaixo, ficou de passar às 11h em ponto pra buscá-la e antes de partirem em viagem, almoçarem num restaurante à quilo do bairro. 

- Mamãe, deixa de ser besta. É só uma viagem daqui até ali. Passa rápido e você vai ver como vai ser divertido. Neinha sempre pergunta pela senhora e agora as duas vão poder ficar batendo papo.

Chegando ao restaurante, a senhora pegou um prato muito pesado e quase deixou que caísse no chão - não fosse pelo reflexo da filha, que aos berros, recriminou a falta de força de Alcemira. Por isso, resolveu fazer o prato da mãe, perguntando o que ela queria e modificando todos os seus desejos.

- Não, nada disso. A senhora tá muito magrinha. Vou colocar um empadão de palmito e milho, sim. É gostosinho. Um caldinho de feijoada também...

Alcemira quase não tinha voz e força pra dizer que só queria um arroz com feijão e tomate, sem muita invencionice. Por fim, comeu o que a filha escolheu, empurrado por um copo de Coca-Cola - coisa que dona Alcemira definitivamente não gostava tanto.

Aí as duas foram pra rodoviária, com a filha reclamando das duas malas que carregava e questionando o porquê do peso das compotas que Alcemira levava à Neinha. Enfrentaram fila, compraram as passagens e, por sorte, o ônibus nem demorou. Sentaram-se confortavelmente nos primeiros lugares à frente e logo sentiram o poder do ar condicionado. Alcemira, que não tinha costume de viagem, começou a balançar as perninhas finas de tanto frio. A filha dormiu, de calça jeans e casaquinho à tira-colo. A barriga começou a doer do almoço e Alcemira se dirigiu lentamente até o fundo do ônibus, onde havia o banheiro. Por lá ficou uns 25 minutos. Quando a filha acordou e notou a falta da mãe ao lado, perguntou pra uma adolescente da outra poltrona se ela havia visto sua mãe. A jovem tirou os fones do ouvido, pediu pra que lhe repetisse a pergunta e disse que a velhinha tinha se dirigido ao banheiro. A filha foi à procura da mãe e quando abriu a porta difícil de abrir, viu Alcemira toda suja, chorando baixinho, com vergonha da diarréia. A filha, ao abrir a porta barulhenta, fez sair todo o cheiro da meia hora acumulada naquele cubículo.

- Ah, mamãe... que merda! Se cagou toda. - e disparou a rir.

A senhora constrangida pediu ajuda e a filha deixou a porta aberta enquanto ia buscar umas toalhas na bolsa. E dizia pelo corredor que a mãe não tinha jeito, deixando a par todos os viajantes nauseados com o cheiro da má digestão. Foram uns dez minutos de voz alta, exposição e limpeza. Tudo compartilhado no ônibus com deboche e mau jeito.

Alcemira foi conduzida ao seu assento, já limpinha, e não conseguiu olhar nos olhos de ninguém. Reclamou fraca com a filha que não devia ter comido o empadão com o caldo do feijão gorduroso. E com Coca-Cola - imagine! A filha falou pra ela parar de falar e descansar até chegar à cidade, porque agora era ela quem estava ficando enjoada com tanto verde, tanta árvore e tanta curva correndo na janela da paisagem serrana.

- Fica olhando as montanhas, mamãe.

Alcemira reclamou que não gostava de viagem, a filha arfou e seguiram pela estrada até avistarem a rodoviária, onde Neinha estava esperando com um lenço cor de abóbora na cabeça.

...

Ao chegarem à casa de Neinha, Alcemira logo de cara avistou um amontoado de bonecas velhas próximo ao portão velho, prontas pra serem levadas por crianças de rua ou um caminhão de lixo. Comentou e recebeu de Neinha a resposta:

- É, Mirinha... Menina se foi. Ta lá com Papai do Céu. Mas fazer o quê, não é?

A filha de Alcemira não havia lhe contado que o principal motivo da viagem era o falecimento de Zilá, filha de Neinha, uma menina de 32 anos que, por falta de oxigenação no parto, ficara aprisionada na cama sem compreender o mundo, se retorcendo e babando muito. A paralisia cerebral deixou a mulher aprisionada aos estímulos infantis. Ela só era chamada de Menina e Alcemira gostava muito dela. Por isso ela tonteou e recebeu a notícia como um baque. Uma lágrima escorreu e a filha não percebeu porque sabia que a mãe estava com aquela doença nos olhos. Mas quando Alcemira chorou como criança, murmurando palavrinhas de susto e doçura, Neinha abraçou e confortou a velhinha dizendo:

- É pra ficar conformada, Mirinha. Eu aceito o que Deus me dá. E Menina ficava presa naquela cama, dando trabalho, sem entender nada do mundo. Fiquei triste demais, era minha filha, mas sei que Menina agora voa com asa de anjo. E como não conseguia olhar pras bonecas dela, enfeitando o quarto, joguei tudo fora.

Alcemira pensava muito, mas pouco dizia. O enterro já havia passado e poucas pessoas foram. Ela queria ter chegado antes, pra consolar a família e se despedir de Zilá. O corpo que não parava quieto e vivia tenso e retorcido, agora jazia em paz.

Neinha então preparou um café muito ralo, quase intragável, que, para a felicidade de todos, veio fornido com biscoitos de polvilho muito bem feitos, torradas leves, uma broinha de côco e geléia de morango. Depois do café, Neinha disse que Alcemira iria dormir no antigo quarto de Menina e que já estava tudo arrumado pra recebê-la com o devido conforto. Alcemira, que tinha vergonha de tudo e achava que com tudo incomodava os outros, aceitou com pena, medo e vontade de ir embora.

À noite, pela madrugada, sonhou que Menina vinha lhe pedir a cama de volta, com três bonecas sujas no braço. Acordou querendo gritar o nome da filha, mas sua voz não alcançava força, apenas desconsolo. Tomou o copo de água que haviam lhe deixado no criado-mudo e resolveu dormir de novo. Pela manhã, acordou com os olhos fechados pelo excesso de remelas, não enxergando nada. Não entendeu onde se encontrava, em que cama dormia, ainda zonza de sono e estranhando o ambiente à volta. Por um breve instante, entendeu que todos os últimos acontecimentos foram uma soma de um sonho turbulento que havia tido. Aliviou-se, pronta com o dedo indicador a cutucar a abertura dos olhos. Sua mente foi despertando mais e depois ela entendeu de vez que a solução de seus tumultos não era pensar que tudo era um sonho, simples assim como nas histórias que ouvia quando pequena. Tudo era verdade, a mais pura verdade, tudo era a sua vida. E tudo se constatou com o aroma do café ralo da manhã e a voz de sua filha falando baixo à porta do quarto:

- Acorda pra cuspir, mamãe. Já são 8h. A gente tá na casa dos outros...



Marcelo Asth

quarta-feira, 2 de março de 2011

Entrega



A mãe de Patrício fazia bolos para fora. Recheio de ameixa, doce de leite, cobertura de maria-mole. Os de criança eram coloridos de confeitos de chocolate. Em papel-arroz a foto de uma criança. Muitas velas pra se comemorar queimariam sobre sua produção. Também torta salgada, com batata palha salpicada por cima. R$40 a torta grande, de amendoim. Saía muito. Foi essa a escolhida por Hermínia, que morava em Copacabana.
Patrício, rapaz novo, fazia as entregas e comprava os ingredientes. Era a forma de ajudar a mãe na sua fabriquinha caseira. Ele saiu de sua casa no Cachambi pra entregar a torta na Siqueira Campos. Um dia quente de enfado e correria, porque a torta tinha que chegar inteira e vistosa à casa da nova freguesa. Ele estava deprimido com o término de um namoro que não ia pra frente nem pra trás – a menina era muito da Igreja.
Dentro do vagão ele pensava muitas coisas. Olhava pro seu reflexo no vidro escuro da janela, somada a imagem aos clarões dos subterrâneos. Observou que muitos se olhavam da mesma forma e que desse modo dava pra olhar pra alguma mocinha num ângulo certo, sem ter que olhar diretamente, olhos nos olhos. Aí lembrou de Kellyane e murchou como a torta não podia. Pensou que todos os presentes no vagão tinham aprendido a andar e a falar. Pensou depois na quantidade de caixões que a terra consumiria. Um a um. E assim tentava imaginar a morte de cada um. Do senhor prostrado com a valise nas mãos e veias azuis nas mãos magras. Os óculos dele ficariam guardados pra sempre num estojo dentro de alguma gaveta. Da jovem de mochila rosa, cabelos pintados e piercing na sobrancelha, pensava em desastre.  Do senhor obeso que ocupava dois assentos, um ataque feio pela madrugada – esse teria um caixão interessante de se imaginar. Todos ali iriam morrer. “Que merda.” – falou quase num tom de resmungo. Quando chegou à estação Siqueira Campos, arregalou os olhos, se preparou pra levantar, reuniu energia e soltou na curva 94-D da estação. Acompanhou a fila da escada rolante e olhou para as pessoas como se fossem gado (incluindo ele mesmo, quando passou por um espelho). Resgatou o calor do sol e se dirigiu ágil até o prédio de Hermínia, onde ela pediu pra que o rapaz subisse.
Chegando ao 8º andar, encontrou uma porta aberta. Milhares de bugingangas espalhadas pela sala do apartamento, muitas rendas, quadros, um vaso de flores de plástico e outro de naturais, duas fumaças de incenso que convergiam num odor adocicado. De dentro da cozinha surgiu Hermínia, senhora solteirona, de ar jovial, batom rosa choque, organza, cetim e lenço florido à cabeça. Um brinco de pena pendia de sua orelha direita e um modelo antigo de óculos pendia no peito carregado por uma correntinha dourada.
Hermínia era dessas senhoras que freqüentavam com assiduidade a loja do Mundo Verde. Era mística, acreditava em bruxas e duendes, fazia banhos de florais e havia montado um altar com muitas pedras de diferentes cores e uma estátua de uma velha muito feia. O barulho do sino-dos-ventos de pedra tangenciava à irritação e era o desespero dos vizinhos. Tirava cartas e se sentia especial.  
- Qual é o seu signo? – perguntou a velha sem antes saudar o entregador.
- Ih, dona. Não sei dessas coisas não...
- Como não, rapaz? Diga o dia em que você nasceu.
E de um diálogo inquisidor, Hermínia foi tentando desvendar a aura e os mistérios do adolescente. Às vezes soltava uma frase de impacto, como se fosse uma revelação de uma velha bruxa sábia: “a vida é uma...”. E tremia e alongava os emes de cada frase, arregalando os olhos no final.
- Você é de Libra, rapaz. Sente aí que vou tirar umas cartas pra você. Não custa nada. Você é de Balança, sabe o peso das coisas...
E assim serviu uma fatia muito grossa da torta que ele havia trazido, num pratinho descascado na pintura – torta que era das mais pedidas e que ele nunca havia provado um pedaço, por não gostar muito de doces e por apenas realizar as entregas. Ele vivia numa casa com o quintal repleto de esculturas de açúcar, creme e glacê, tudo doce e enjoativo demais.
Ficou estático, abismado com o mundo imaginário e poderoso da nova cliente da mãe. Ele sentia sede e por pudor não ousou pedir nem água. Ela cortou seu pensamento com uma saborosa laranjada.
- Ei. Não fique olhando pra Cristina. Ela tem olho de vidro, mas tudo vê. Ela é mística também. – e a letra eme parecia nem caber em sua boca, de tanta trepidação. Riu regando um vaso com uma dália saltitante de cor estupefata.
Cristina era uma boneca de rosto de louça e cabelos que pareciam de gente, muito bem conservada, que ficava estrategicamente sentada no meio do sofá para que os espíritos maus não se sentassem na casa. Trazia roupas rendadas, como se fosse uma alma de séculos outros aprisionada no olhar torpe de cílios falsos.
- Era da tia da minha avó, que era uma mulher muito ousada pra época. – sentenciou Hermínia gesticulando com dedos cheios de anéis de pedras coloridas.
Patrício sentiu medo e talvez por isso tenha respeitado e ficado mais, comendo com prazer a torta que nunca havia provado. Foi inquirido, perguntado, revelado. Na verdade, nada demais. Hermínia dizia verdades que, pensando bem, poderiam caber a qualquer um, e não somente aos cariocas librianos de 13 de outubro, nascidos às 3 e 33 da madrugada fria do ano de 1992. O impacto com que Patrício recebia as informações, que era diferente. Ele sentia o poder e a verdade dos lábios rosa neon da senhora e ficou profundamente abalado com o diagnóstico da alma. Sempre que ia ao médico lhe receitavam anagélsicos, antibióticos e tratamentos. Ali, que remédio receberia?
Passaram quase 2 horas no relógio antigo, que ficava ao lado de um gato decorativo da década de 70. A torta já estava na metade. Ela disse que entraria em contato com a mãe do rapaz mais vezes. Patrício, por mais que tenha gostado do tratamento da senhora, do deixar à vontade e da vida nada costumeira que ela revelava, ficou apreensivo por pensar em mais entregas àquela figura estranha de Copacabana. Sentiu medo, mas ela parecia ler os pensamentos:
- Você virá mais vezes aqui. Adoro doce com amendoim e sua mãe acertou na medida. Eu tenho o prazer de não ter diabetes.
O tédio do garoto havia passado e nem Kellyane regressava à mente turbulenta. Tudo era gozado e soava como piada, parecia um filme.
- Eu que já estou muito velha, fico pensando no meu caixão, como vai ser. Eu não quero um caixão normal, não. Estou quase com o dinheiro certo pra comprar meu caixão, falta pouco. Aí vou ter que arranjar algum canto no meu quarto pra deixar ele em pé. Viu aquele monte de pedrinhas reunidas no canto ali? Vou trabalhar ele todo na tampa, encher de pedra energizada. Teve uma época em que eu queria que me queimassem, nessa coisa de cremação. Mas eu li muito sobre as bruxas e voltei atrás. Além do mais, vivo a terceira idade toda nesse apartamento cheio de pó pra ficar mais apertada numa caixa cheia de poeira? Acho bonito a gente se entregar à terra, virar energia, reciclar... – e emendava uma idéia na outra, sem cessar, interrompendo somente com gordas gargalhadas.
- Seu futuro será muito feliz. Mas não dê corda a meninas mais novas que você. Você terá sorte se o poço do seu peito fizer eco com um nome de mulher.
Ela pontuou o encontro ainda com uma boa gorgeta, que foi aceita a custo pelo rapaz, por falta de atitude e do que fazer. E como a luz do sol já não batia mais na janela daquela tarde e uma espécie de lusco-fusco obstruía o momento, Hermínia pediu licença pra acender 12 velas. Era um ritual e ele não entendia a necessidade dele estar presente. Ele pensou na solidão daquela senhora e ela falou muito baixo:
- Não sou sozinha, não. Eu estou rodeada de anjos.
O garoto se assustou e disse que era tarde, que precisava ir embora. Neste instante um som estranho, um ruído muito vivo, veio do sofá onde estava a boneca. Patrício gelou a alma e bambeou as pernas finas. Era Meia-Noite, um gato preto muito ossudo e preguiçoso que saiu por debaixo do sofá num bocejo que parecia eterno consumindo segundos naquele ar parado.
- Você vai agora com a proteção do Universo. – olhou pro alto e murmurou palavras que ele não entendeu.
E olhando pro fundo dos olhos do entregador de bolos, mostrou os seus olhos verdes e desgastados arrematando o encontro com um tom de oração de máximo poder e exorcização dos males:
- Tua alma é espiritual e indissolúvel. A bem-feitoria dos teus sinais é translúcida e refulgente. E quando jornadear feche sua cabeça pro mal do poder de sugar que os outros têm. São todos uns vampiros perigosos se tua energia é privilegiada. O nosso vínculo agora é tomado de poder por equilibrarmos nossas energias sem mutação. Toma essa pedra e guarda onde ninguém a toque com o olhar.
E coroando como um ponto final, na verdade súbita de quem se dizia sábia mulher poderosa, lançou com impacto a frase que sempre repetia, e que faria Patrício pensar por muitos dias:
- A vida é ummmma.
Patrício, por mais que não entendesse nada de misticismo e nem fosse à igreja - por não ter paciência de não acreditar naquilo que não vê – ejetou os pensamentos que vinham lhe deprimindo em desgaste, aceitando os conselhos da velha. Despediu-se com amizade e resquícios de timidez. Entrou no elevador sorrindo, deu boa noite ao porteiro e voltou com a alma flamejante pra Cachambi, correndo nos trilhos e se sentindo também poderoso e ousado, olhando firme pras pessoas e entendendo que cada um dos presentes no vagão do metrô era uma incógnita repleta de emoção, confusão e alumbramento na vida. O que cada um traria em suas casas, quais seriam seus segredos e revelações. O mundo parecia estar se abrindo como uma rosa desabotoando plácida e cheia de mistério. As possibilidades de atenção eram muitas, tem como ser feliz em tudo. Patrício mal esperava por conhecer outros lares e observar com atenção o mundo dos clientes da mãe, que a essa hora finalizava um bolo de tronco, de chocolate branco.


Marcelo Asth