quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Átimo


ÁTIMO

Ele estava desprovido da energia habitual. Havia percebido há anos que acordar exigia a dificuldade de verticalizar seus caminhos, enfileirar-se nas horas e cumprir listas de tarefas. Arrastava-se aos primeiros momentos do dia e não olhava o entorno da cama. Sacudia-se no banho querendo escorrer pelo ralo. Mastigava seu pão sem vontade e engolia por obrigação, porque parecia doer seu interior enjoado. Estava tão introspectivo que nem notara que havia 12 espelhos em sua casa. Desejava a pluriformidade como poder, pra se dividir em outros escravos do que obedecia. Dentro dele criava cobras críticas no lodo e elas pescavam o pão com ojeriza. Mixórdia.

Era visível o tédio de colocar um pé à frente do outro pra chegar onde o olho alcançava. Suas costas encurvavam-se prostradas de tanta cidade. O ruído do barulho detonava sua paz e o cheiro do carburador nem era mais sentido agora. Ainda por cima o sol, o suor, o engasgo, o mistifório, a balbúrdia central, seu casamento e os 12 espelhos.

Tinha que ir ao médico, cortar cabelo e colocar uma bolsa cheia de roupas no conserto. O sapato pra engraxar não era mais preciso - chegara à conclusão -, pois ninguém olhava para seus pés a ponto de notar seu desdém. Um alívio de um a menos. Sua família não o conhecia. Era difícil trocar carinho e era fácil pagar sorvetes. Achava todos esquisitos.

Sua relação com o dinheiro era madura, porque entendia não poder detê-lo. Deixava-se correr as despesas e seguia cumprindo. Procurava o prazer grátis na televisão, no jogo de futebol, na nudez vulgarizada da internet. E arrotava todo o descabido sentimento de culpa dentro do aparelho digestório.

Enganou-se de álcool por todo esse vácuo lacunar de sua história decrescente. Adquiriu uma doença de sangue, amarelou seu olhar cabisbaixo e deu entrada num hospital que podia pagar, mas que seria por fim um lar de repouso, o seu descanso final. Afinal, era tudo uma grande parada, um foco merecido. Seu quarto, deitado, sem espelhos, sem a limpeza de si obrigatória. A luz o incomodava. Neste ponto não lembrava quando tinha acabado de nascer, com a cabeça vermelha e a vida pela frente. Um átimo. Era tão fácil desligar-se de tudo que em pouco tempo não seria mais nada.


Marcelo Asth

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