sábado, 30 de abril de 2011

Ver-se

Ultimamente sentia que uma ruína se apoderava de seu destino. A começar, encarou com o olhar o seu produto corporal de anos. Seus braços quando acenavam pareciam se alegrar ou se fazer notar mais ainda, devido a pele flácida e desesperada que pendia. Um aceno quando se despedia de uma imagem que abandonava em câmera lenta. Tudo foi gradativo, mas perceber-se foi um momento de rapidez brusca. Quando o olho acorda, lamenta-se a passagem. Sempre há uma cordilheira no meio de um pensamento. 

Um clichê se apoderava verdadeiramente do seu pensamento, aquele sentimento de que parece que foi ontem. Destas palavras surge uma lacuna de dúvida, pois não se sabe se o tempo realmente passou porque não foi percebido, apenas se passaram os dias por movimento solar. E comer pão, fazer a vida, escovar dentes, dormir. O corpo também trouxe sóis e luas marcantes, enquanto o espírito ficava preso ao tempo em que se acostumou com a identidade. 

Nas costas de suas mãos - no lado da mão que não percebe as linhas da vida - várias manchas marrons pintavam a pele, como cracas que viajam silenciosas no oceano escuro que beija o casco de um barco velho. Por baixo da pele suas veias (cordas de harpa) já fazem seu serviço de estradas sabendo todos os caminhos decorados. Petéquias pipocaram nas costas, que estavam brancas demais. As unhas sob o esmalte rosa-chá se amarelaram. O rosto todo cansado de fixar-se tenro à face, querendo colar-se ao instante da vida, agora parecia escorrer e talhar os caminhos de expressão. 

Os próprios olhos, quando olhou-os atentamente, apresentando-os à sua imagem, perceberam que havia algo quase esfumaçado em seu tom - um brilho que se devorava e se perdia. Estes mesmos olhos que eram feitos de selvas e provocavam instintos num fragmento passado. Açulou suas angústias porque se permitiu ver desta forma. Não se reconhecia porque da última vez que se viu consciente foi quando descobriu que existia e via o que era ser criança.

Seus banhos agora não eram mais caprichosos; era difícil abaixar-se pra limpar com destreza cada parte que aprendeu a conhecer. A coluna não se curva tanto e as pernas não vem ao encontro das mãos. Vergonha de ficar nua por muito tempo. Pudor da água que toca o corpo esquecido. Medo de escorregar no piso do box do banheiro apertado. Põe-se agora o pijama e percebe um mau eflúvio pela manhã, como um flor pálida, seca e esquecida num vaso no canto da varanda.

Pra terminar, sabendo-se término, necessitando findar, aprendeu que ver-se nas trajetórias foi sua salvação. Todas as cordilheiras que dividem os pensamentos e as escolhas derrubam-se por si só e mostram que o poder realmente vem de cada um. O mais difícil neste momento é pensar que a imaturidade, a cegueira vital, a ignorância e a aceitação de convenções estabelecidas e generalizadas faz tantos caminhos tomados de bifurcação serem apenas trechos de passagem. Mas tudo era escolha; se ela soubesse... ver-se neste instante era como se o mundo inteiro a aplaudisse, vibrasse, bramisse e fizesse uma pausa espetacular pro compromisso de reconhecimento. Fazia assim tudo ser evidente e eterno, mais extraordinário do que a própria vida. Um exercício de memória pra lembrar do que foi esquecido e pra retomar o que em outros tempo fez questão de passar adiante. Se ainda desse tempo, voltava correndo contra a corrente, desatando e rompendo elos e cordas que atam-na ao tempo, que é um cachorro louco solto num bosque escuro.

Não preparou malas, pois sua única herança não era nem o corpo cansado e beijado pelo o que é finito. O que levaria para todo o sempre era a experiência de faiscar centelhas de vida interferindo em tantas vidas alheias, pisando espaços e revolvendo grãos de areia nas praias, marcando passos, lambendo sem saber as gotas de mistério que se instalaram em sua saliva sedenta de mais mistérios inesgotáveis.

Olhou-se no espelho. Percorreu a reprodução imagética como um raio-x de seus exames muito freqüentes. Não se fixou por muito tempo no reflexo. Partiu seu olhar, em primeira pessoa, para o campo visual de seu território e não sorriu e nem chorou. Nem pensou muito. Talvez tenha sentido ao mesmo tempo um desinteresse por clarear-se uma noção do que é vida e o que são os efeitos de um caminho, fora um alívio de gratidão pelo o que é elétrico e passeia em nossos corpos, quando nos colocamos dentro de um planeta com a resignação dos mortais.


Marcelo Asth

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Aborto

O dia inteiro parecia abrigar um monstro na barriga. Uma náusea pungente. Eu poderia estar grávida de alguma esperança ou um ser que viesse dele, numa soma com o que eu trago. Eu poderia estar reagindo mal a péssima mistura detestável de maçã com leite. Ou o iogurte velho de mel. Eu poderia estar com nojo disso tudo. Por isso, por não saber de onde vinha esse meu enjoo repentino, vomitei sem culpa, expurgando e produzindo sons altos, deixando os olhos muito vermelhos de ódio e alegria de estar me expressando. Pelo menos ali, a sós, na beira da privada, totalmente pública e privada a minha dor. Me senti viva. Me acompanhando, o rádio nas alturas com aquela música ridícula, a janela aberta pro que é noturno e uma cafonice que me atormentou a vida. Os vizinhos não foram tomados por meu pranto. A lua talvez tenha escutado, mas ela é tomada por um glamour debochado, feita como a prostituta dos poetas. Talvez nesse sentido o sol seja mais solidário, por queimar sem piedade. A rosa guardada que você me deu me refletiu bem o que você é pra mim. Olhei praquele galho seco, antes verde, agora marrom. Pétalas ridículas, murchas. É assim que você ficou. Ridículo. Uns espinhos pobres que me cutucam lembrança. Eu cheirei tanto aquela flor morta! Agora a mancha no meu livro de poesia chilena, marcando pra sempre aquelas palavras que se tornaram minhas. Vomito de novo, jorro, jato, gracejos. A estupidez de se achar gigante pela própria natureza e não ser coisa alguma. É só um passatempo das massas, uma euforia das multidões. Quem passa por mim se amassa. Sendo um bebê à espera ou má digestão de comer ou ser mal comida, penso que o melhor agora é sugar toda a fumaça fétida do mundo. Compro uns maços de cigarros e os fumo todos depois que passar um batom tão cafona quanto eu. E eu ainda abri aquela carta que eu jurei nunca ler em voz alta: "Não quero lhe falar, meu grande amor, do tudo o que já falei e parece ser nota batida. Eu te amo tanto e tra-la-lá. Seus caminhos são tantos, suas emoções agora se repetem. Suas dores todas estão ainda sobrevoando, palpáveis". Toda essa besteira torta, falada, escrita, palavra, palavra, palavra, não se chega a nada, porque tua grafia não me convence. Tem que se ter piedade. O amor não é dignidade. Pra se amar tem que se ter estômago. Ou parir ou sangrar todo aborto. Inspirar fumaça pra acelerar o processo. De tantas marcas e rejeições, agora quando me amam acho patético. Coitados dos que sofrem. Eu vou depois de passar meu batom, antes de comprar cigarro, bater no liquidificador mofado a maçã velha e caquética que guardo há tempos na geladeira e bater com o leite azedo que tive preguiça de jogar fora. Beber, beber, beber. Ouvindo aquela musiquinha chata, querendo ser uma deusa, toda tua, da cidade toda, puta irônica rindo na cama, se coçando fingindo amor. Você deve adorar que eu finja amor, eu quero ir te pisando. Por tudo o que já passei na vida. Preciso de um alvo pra testar meu salto. Que merda. Saí pra comprar cigarros.

Belina Batista

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Jiló

Flavinho ganhou um pássaro dos que mais cantavam. E descobriu que amava seu canto. Prendeu-o numa gaiola e ficou a observá-lo em seu cotidiano. Sonhava à noite com o pássaro, que tinham roubado, que o gato tinha amassado as grades, que os garotos da rua tinham tacado pedras. Acordava e ia direto ao pássaro. Alpiste. O pássaro às vezes não correspondia o quanto Flavinho queria ouvir do canto. Talvez o pássaro não quisesse cantar. Talvez quisesse voar pra outros cantos. Mas Flavinho descobriu que um canto bonito saía quando ele oferecia jiló ao pássaro. E passou a dar muitos jilós. E ouvia muitos cantos. E se encantava com as notas. E sonhava com o pássaro. E o pássaro querendo voar. O pássaro foi adoecendo. Não queria mais ficar no poleiro. Não mais cantou. Rejeitou jiló. Morreu.

Marcelo Asth

domingo, 17 de abril de 2011

Convite

Ela fica muito perdida quando entregam liberdade demais. Sai aos socos, golpeando as incertezas que ponderam as delicadezas. Poderia afagar a saudade em diferentes corpos. Tudo o que ela mais buscava era a prisão, estar encerrada em si, no máximo num único outro, em poder de simbiose. Poderia aguardar em silêncio, feito Helena tecendo a rede na espera do amor. Mas o que mais desesperava a ela era o fato da liberdade poder varrer suas veias, encharcadas de fixas configurações.
Entregou às três irmãs velhas as linhas e fazendas do vestido da festa. Retirara da funda gaveta, um camafeu de herança que há muito se encontrava enrolado num lenço com sachês de ervas. Ao invés de pregá-lo a nova vestimenta, beijou-o e depositou o camafeu na gaveta - sem os cuidados de outrora. O passado era feito de ruínas; para o novo que se abria, ela almejava futuros.
De um perfume de rosas, pingou três gotas no triângulo do corpo: dobras dos cotovelos e nuca. Não havia o mesmo sentido estar em festa, mas havia sido convidada; o convite exigia elegância, sorriso no rosto e altivez na altura dos cabelos armados. Tomou as horas e, um pouco desajeitada, calçou o sapato de salto fino. Era difícil o equilíbrio, tanto nas pernas como na mente.
A brisa do outono beijou-lhe a face. Ela se sentia nessa melancolia de sentir versos lhe rompendo instantes e sentia também que agora era livre, contemplada com os arroubos de um vento e de uma vida que se erguia imperiosa diante de seus saltos.
O pretérito projetou-se no presente. Tudo se arranjava com a música que fugia do local do baile; estava pronta pra sorrir aos outros. Avistou um moço vistoso e num ímpeto seguiu em sua direção. Ele recolhia os convites à porta, tinha um quepe engraçado e era gentil como todos com que ela suspirava. Desejou a ela uma boa noite e garantiu-lhe a diversão. Entrar por aquela porta foi um rito de passagem, pois agora a música arrombava seus poros e a orquestra não se importava. Sorveu de uma taça um gole de champagne. O gosto do álcool roçava-lhe o paladar e depois de duas, três, talvez quatro taças que vinham em sua direção, começou a girar, enquanto o mundo lhe rodava. Seus passos confundiam-se com a valsa. Suas direções premeditavam dança. Como se um teatro fosse, cada rosto que mirava era o personagem de sua história. Apesar de toda a tontura, portava com elegância a sua essência, sorria lépida e mostrava o colo que exalava seu perfume junto ao suor delicado.
Tomava ar na varanda quando sentiu um vulto próximo às suas costas. Os convidados, os muitos que estavam sentados, viam nela graça e mocidade, não julgando sua livre desenvoltura. Preferiu manter o calor daquela presença a ter certeza quanto à identidade do vulto. Só ali, enredada em sensações, construindo uma malícia que se achava morta, percebeu que entrou na festa tão tépida e desnorteada que não cumprimentou os que a convidaram.
Enquanto retirava a maquilagem defronte ao espelho, queria apagar o suspiro da diversão noturna. Saiu do banheiro (que não se lembrava mais como havia entrado), tropeçando nas moças que conversavam e corrigiam suas tintas no rosto, despedindo-se do local que não mais a percebia - rindo-se toda, com vontade de urinar, xingando o vento que continuava a cantá-la e percebendo que livre ela nunca seria.  

Eleonor Manns

lusco-fusco

Tem alguém falando de mim. A orelha esquerda arde e eu tenho certeza. A tarde em que me encontro é regada da serenidade dos lusco-fuscos. Tenho medo dessa hora quando a noite toma o dia. É um momento de mariposa desesperada, não adianta acender a lâmpada, me torno frágil, há alguém que fala, discursa, maltrata, me cala. Daqui do alto do morro observo o movimento sutil em que as casas lá de baixo começam a brilhar. Os outros do vilarejo sabem de minha existência?
Os meus olhos já não alcançam tão longe. Hoje não vou dormir em minha companhia, quero sair daqui de casa sem esperar a minha volta, caminhar nos contornos da montanha. Coloco o banquinho próximo à porta, preparo a lenha do fogão e fervo a água para o café. Saio de casa e deixo tudo como está, o fogo tremendo, chispando, a água fugindo, o café esperando. Retorno no tempo certo. Retorno pra outra cidade, da qual parti quando me sentia como essa mariposa desesperada. O gosto ainda na língua e a lembrança no fundo do copo. Se eu fosse árabe, lia o futuro na borra, mas deixo que a linha da mão me discorra o fundo do fim que corre como o trem que atropela os ventos.
Há um sussurro martelando no ouvido esquerdo. Se eu fosse saudade, ensurdecia as origens.

Eleonor Manns

segunda-feira, 11 de abril de 2011

seilá

Uma eterna gratidão sentida é o que devemos sem medo buscar. Enfrentar tudo o que de torpe e que nos rompe, que nos corrempe às vezes na fraqueza. Eu quero ser diferente do que sou aquilo. O mundo é uma bolha de sabão em transformação. Adoro dizer é, é isso, é assim. É o que eu sei de mim. Bolha. Fica tremendo multicolorida, cheia de pavor e fantasia. Aquilo prova que a vida é espetáculo. 
É fácil assimilar bondade, sentimento de contribuição e ainda de prazer no que faz curioso. Viver o instante único e ao mesmo tempo, eterno. Seremos sempre participantes, memórias ativas talvez presas no fio de alguma aranha esquecida.
Eu queria propor uma mudança de harmonia. Mas eu penso que no mundo deve existir um equilíbrio, por que senão não haveria maldade. É vivo ter divisões. A gente deve estar aqui, vibrando numa mesma massa, com essa intenção. Talvez se tudo transpor-se harmonia, o enfado será constituinte dessa espera. A lição, que a vida sempre nos prega, vem com dificuldade vizinha.
Eu quero dividir meu sangue numa vivência dessas mil realidades. Quero nadar na fonte sem beber a água, reconhecendo o que provoca em cada experiência.
A gente deve brotar felicidade, acredito. E dar estímulo, o que é o mais fundamental. Adoro dizer é, é isso, é assim.
Vamos estimular por aí? Proponho. Há um bando de cabeças selvagens querendo sonhar o seu sonho. Fila de espera. Eu quero ajudar, mas ser ajudado. Entender a relação. Socializar; preencher seu entendimento dentro de um grupo total do planeta.
Tudo é palavra que me devora. E me faz sentido. Olha eu aqui, entendi tudo.

O quanto está longe o distante, para que possamos projetar. Viver é uma experiência de responsabilidade.

Marcelo Asth 

60

Sessenta anos de Iêda e Aída. Vinha com letras douradas o texto principal do convite de aniversário. Iêda escolheu o modelo, a cor e a fonte. Mandaram fazer uma tiragem limitada, pra uns 150 convidados. Uma grande festa no Tijuca Tênis Clube. 


Confeccionaram vestidos iguais, em tons muito semelhantes e pálidos. Iêda trajou o rosa chá e Aída o de tom desmaiado de pêssego. Fitas no mesmo lugar do cabelo. Uma foto das duas na antiga casa dos pais, no Grajaú, ilustrava o convite. As duas moravam juntas agora na casa de herança. Iêda e Aída eram gêmeas. Fora tanta semelhança - que os olhos dos outros identificavam -, existia dentro das duas um abismo de discrepâncias e algo velado que identificava um perigo. Talvez um barril de pólvora estivesse pronto a faiscar explosão.

Iêda nasceu cerca de 2 minutos antes de Aída, por isso se dizia sempre mais velha e experiente. Por toda a vida, tomou decisões à frente da irmã, fez pirraça, acusou a irmã de bagunças que ela não tinha feito. Aída trazia sempre o traço da boca numa parábola decrescente, enquanto Iêda sorria com uma lua crescente no lugar da boca.

A primeira paixão de Aída foi descoberta por Iêda num diário de cadeadinho, que ela havia ganhado de Tia Valdete. Idêntico ao que ela também deu pra Iêda. Guardava embaixo do colchão da cama com pudor e agilidade, sabendo que não existia lugar seguro em toda a sua vida. Iêda procurou e achou a revelação. Adolfo era um homem robusto, de bigode de escovão, olhos amendoados, topete endurecido na brilhantina e óculos de inteligente. Família tradicional tijucana, ia sempre visitar os primos do Grajaú - vizinhos das gêmeas. Aída ficava no portão, pensando de forma não convencional - seus pensamentos eram românticos demais e saíam num enfado de rimas e poemas tolos. Rimava imaginando e nunca expunha seus versos. Quando resolveu contar pro amigo diário de papel mudo e surdo, sem sentimento, escreveu em versinhos:

Quão grande a formosura
que emana Adolfinho...
meu coração bate na altura
do que merece meu carinho.

Sonho acordada na janela,
enquanto ele me olha certeiro.
Quero ser a rosa na lapela
que perfuma teu corpo inteiro.

Versos ordinários confidenciados a um diário que tinha um cadeado fácil de abrir. Iêda riu-se toda lendo e repetindo em voz alta pelo quarto. Ficou roseada no rosto, o que deve ter vindo de uma raiva que acelera o sangue e destaca as hemácias. Ruboriza e altera. A primeira providência que tomou foi ir à casa dos vizinhos com uma fatia enorme do bolo quente que a mãe havia acabado de preparar. Por coincidência, Adolfo estava a palestrar com os primos. Falava de uma viagem recente à Europa - naquele instante, descrevia Milão. Ela se chegou toda ofegante, com olhares diretos nos olhos amendoados do rapaz elegante e maduro. Começaram a namorar tempos depois. A mãe ficou orgulhosa do gosto da filha e Adolfo passou a não só passar pelo portão dos vizinhos, mas também a marcar presença nos almoços de domingo, na mesa farta e no coração farto de Aída.

Como Iêda freqüentava os bailes da Tijuca e, Aída, por sofrer, ficava em casa bordando e transbordando, um dia foi ela quem quis procurar o diário da irmã. Descobriu o local secreto (atrás da estante) e também que Iêda estava se engraçando pra cima de um tal de Emílio. E claro que Aída resolveu contar tudo pra Adolfo quando ele apareceu no portão da casa à procura de Iêda. Adolfo saiu transtornado dali e bateu com o carro, morrendo duas horas depois do acidente.

Depois desse episódio, as duas ficaram deprimidas e nunca mais desejaram paixão. Os anos de passaram, os pais também morreram e as duas continuaram na casa, administrando o lar. Antes da mãe morrer, as duas se formaram professoras e começaram a dar aulas na mesma escola. Iêda sempre inventava problemas no lar e desculpas atrapalhadas no dia de escolha das turmas e horários na escola, chegando sempre antes de Aída.

Muitos anos se passaram. O dia da festa chegou. 60 anos. Juntas. Aída e Iêda se abraçaram pela manhã, com certa distância. Tomaram um ótimo café da manhã, fizeram as preparações da festa e mais pra perto do momento, se arrumaram belamente. Iêda passou um perfume caro demais. Aída espirrou, por alergia. Quase na hora da saída de casa, Aída anunciou que estava de malas prontas, estava de mudança e que o caminhão já iria chegar à casa. 

Iêda gelou a cabeça e imaginou a festa, a casa e a vida ficando sozinha, sem um espelho onde pudesse maltratar a imagem que sufocava. Como iria trabalhar seu mundo, perder suas referências? Aída havia feito seus planos e os guardou secretos, nem compartilhando com diários ou indiretas. 

Estava pronta. O caminhão pequeno buzinou e Aída começou a sua mudança, que era pouca. Iria levar umas 2 malas de roupa, que havia feito durante uma saída de Iêda aos preparativos da festa. Uma poltrona pé-palito que seu pai adorava e algumas louças que lavava sempre. Mais caixas de bugingangas. Disse que ia fazer sua vida no interior do estado. Juntou dinheiro a vida toda, guardou o que ficou pra ela de herança. Agora pensava em passar seus últimos anos em liberdade de pensamento. Tudo planejado, dava pra comprar uma casa. Santa Maria Madalena, onde se enterrou Dercy, ídolo da chanchada.

Iêda chorou em silêncio, ficou muda e com pensamentos embaralhados. Não quis falar nada. Saiu de casa à pé, pisando duro e sem passos, cambaleando contida rumo ao Tijuca Tênis Clube. Receber seus amigos.


Marcelo Asth

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Colisão (rima)

Talvez seja muita violência não se assentar. Eu sou um espinheiro, repleto de arestas, não sou a forma esférica, redonda, que no eixo gira. Posso ser o desleixo que a alma vira quando não encontra sentido em rodar. Sou quadrado, pontudo, cheio de pontos de incômodo. A impressão que passo também pode machucar a garganta de quem me engole. É preciso mastigar - dou a dica. Mas é preciso sangrar o céu da boca. Se penso de modo inverso, não precisa rezar o terço, me interpelar, de que não penso direito, de que não sei rezar. Não há pra quem rezar, tudo está solto e perdido. Insólito-monótono-vácuo, o som da geladeira retrata a vida. Há falsas ilusões espalhadas de que tudo encontra-se em harmonia: é mentira! Eu me choco no que tenta ser esférico, machuco e me firo, por fim. Talvez seja prudente se ausentar do mundo. Há alguém a minha espera que não seja elipse, que não seja esfera. Quero um encontro com o eclipse, com a sombra de uma fera, quero a fuga da tolice de esperar-me a ver quimera. Quem me era, sou quem? Quem me erra se não sou ninguém? Pergunta é estupidez. Estamos sozinhos no mundo e não é a nossa vez. A resposta de um outro vem de um mundo alienígena. Nunca - é fato - saberão poder me dar a rima.

Petrillo Von-Goethe