domingo, 3 de outubro de 2010

A Poética do Espaço - Gaston Bachelard


“Não existem crianças que deixam o brinquedo para ir se aborrecer num canto do sótão? Sótão dos meus tédios, quantas vezes senti tua falta quando a vida múltipla me fazia perder o germe de toda liberdade!”

“A casa, o quarto, o sótão onde ficamos sozinhos dão os quadros de um devaneio interminável, de um devaneio que só a poesia, em uma obra, poderia concluir, realizar."

“O próprio sonhador sonha racionalmente; para ele, o telhado pontiagudo corta as nuvens. Todos os pensamentos ligados ao telhado são claros."


“E o teto é abobado. Que grande princípio de sonho de intimidade é um teto abobado! Reflete incessantemente a intimidade em seu centro.”


"No sótão, vê-se a nu, com prazer, o forte arcabouço do vigamento. Participa-se da sólida geometria do carpinteiro.”

“Os andares elevados, o sótão, o sonhador os ‘edifica’ e os reedifica bem edificados.”


"De que serviria, por exemplo, dar a planta do aposento que foi realmente o meu quarto, descrever o quartinho no fundo de um sótão, dizer que da janela, através de um vão no teto, se via a colina? Só eu, em minhas lembranças de outro século, posso abrir o armário profundo que guarda ainda, só para mim, o cheiro único, o cheiro das uvas que secam na grade. O cheiro da uva!





“‘o homem prudente’ de Jung procura sua coragem nos álibis do sótão. No sótão, camundongos e ratos podem fazer o seu alvoroço. Quando o dono da casa chegar, eles voltarão ao silêncio da toca.”

“No sótão, os medos ‘racionalizam-se’ facilmente.”

“No sótão, a experiência diurna pode sempre dissipar os medos da noite.”

“Finalmente, a escada do sótão, mais abrupta, mais gasta, nós a subimos sempre. Ela traz o signo da ascensão para a mais tranqüila solidão. Quando volto a sonhar nos sótãos de antanho, não desço jamais.”

“A psicanálise descobriu o sonho da escada. Mas, como tem necessidade de um simbolismo globalizante para fixar sua interpretação, deu pouca atenção à complexidade das misturas do devaneio com a lembrança. Eis por que, neste ponto como em outros, a psicanálise está mais apta a estudar os sonhos que os devaneios. A fenomenologia do devaneio pode deslindar o complexo de memória e imaginação. Ela se faz necessariamente sensível às diferenciações do símbolo. O devaneio poético, criador de símbolos, dá à nossa intimidade uma atividade polissimbólica. E as lembranças se depuram. No devaneio, a casa onírica atinge uma sensibilidade extrema. Por vezes, alguns degraus inscreveram na memória um pequeno desnivelamento da casa natal.”

“Fugimos do pensamento para procurar um verdadeiro refúgio.”

“Quantos abrigos encaixados uns nos outros encontraríamos se registrássemos, em seus detalhes e hierarquia, todas as imagens pelas quais vivemos os nossos devaneios de intimidade! Quantos valores difusos poderíamos concentrar se vivêssemos, com toda a sinceridade, as imagens dos nossos devaneios!”


Gaston Bachelard.
Trechos de "A POÉTICA DO ESPAÇO".

2 comentários:

  1. Tenho lido esse livro. É lindo, né?
    Que sempre haja macaquinhos no sótão.

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  2. "Era uma vez um menino maluquinho. Ele tinha o olho maior que a barriga. Tinha fogo no rabo, tinha vento nos pés, umas pernas enormes
    (que davam para abraçar o mundo) e macaquinhos no sótão (embora nem soubesse o que significava
    macaquinhos no sótão)."

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