quinta-feira, 3 de março de 2016

Pasto

Não estava nem aqui pra isso. Não sei precisar o pra quê. Nunca precisei. Precisão cirúrgica no instante das coisas, aliás, nunca foi a minha medicina. A minha sina mede a energia dos fatos e já é difícil por bastante percebê-lo. Por isso uma medicina. Por ter que prostrar-me diante do movimento do momento, parar tudo dessa engenharia de tempo, queimar os véus mais densos com fósforos que me queimam também os dedos e por fim, poder me olhar cru como ave recém-nascida e sinistra e frágil e linda por detrás das alegorias. Todo olhar-se é espelho e também se faz como cura. Não é o olho que olha. É o dentro. Quebra toda a argamassa mundana do que a mente emana e eletriza todo o vácuo que se torna o todo. 
Sinto em mim o peito de São Francisco de Assis, mas me adensa o falo vermelho de Exu. Sigo rindo. Passando as mãos pelas costas posso sentir os poros dilatados dos quais saíram, um dia, penas. Não tenho pena de mim. Mas sempre estou sendo punido. E ungido, e abençoado. O mundo é um tapa e um aperto de mão, um trato, um tato. Sigo eu mesmo me flechando em sangue, me caçando pra me comer, na egofagia, na emboscada de ser meu maior inimigo. Sou o composto delirante que une treva e luz - buracos que flecho e escapam a pura energia branca do plasma e buracos que fecho e escarpam distâncias do que busco. Mas quem se deita comigo em gozo na lama mundana? Meu amigo eu. Sufoco no amor de cobras retorcendo em mim, estrangulando esse eu que me ama e jogo a casca na composteira dos dias. Doo a dor às minhocas, que tem sabedoria em transformar tudo em ar pra terra. Depois refaço-me, refascino-me, me assisto refacista e me abraço, melhor amante. Luto contra e amo mesmo, tem que ser assim. É como se fosse coisa de brincar de gangorra, indo ao céu e caindo na vala, rindo e chorando nas parábolas ascendentes e decrescentes das linhas de meus lábios frios. Tem essa história de que fomos e seremos sempre poeira de tudo, mas não me acostumo. A minha sorte é que a anima que me galopa. Trota em mim todo o desejo e também o Ser. Sou cavalo, cavalgadura e aparelho, esse corpo que traz consigo a fagulha do imortal. Agora esqueci meu corpo – não deitei na cama. Quis ficar nessa imagem da fagulha. Isso vai me ajudando. Essa coisa de corpo pesa. Volto lá naquele pássaro recém-desovado, com o pouco de pena colado de gema, vendo o mundo sei lá com que olhos, esperando o vento que vá busca-lo ao voo. Estou ali no ninho, incontinente, minha mãe pássaro é o mesmo que Deus, me mostra o que tenho à volta, como devo piar, cantar, voar, comer as minhocas que alimentei, fugir das cobras que se enroscam em amor perigoso. Cuidado com a cobra, que traz segredos e mistérios, mas traz a língua bifurcada, diz de dois modos o que a ensinaram. São Francisco me visita, me dá seu dedo como um galho firme. Exu passa e sente fome de ovos. Dali voo. Voo de Dali, tudo me derrete, o tempo derrete porque não mais me existe. Derreto e sinto o luxo de entregar-se à esfera – talvez ali.
Teve essa coisa toda de santo, em mim ficam aquelas imagem dos olhos ao alto, orações também ao alto. O expiar dos santos revela a quem vê na superfície uma vida de sacrifício e resignação. Mas por trás há gozo, deleite do pós-trauma. Eles sabem sofrer e depois rir como se fosse piada. Nunca gostei de piada. Me contam e eu forço riso pra não chatear. Eu rio de cada coisa que nem acreditariam se eu fosse rir agora. Mas não estou achando graça, ainda estou lá no expiar dos santos. Tenho a impressão de que é como eletrochoque, algo que perpassa em descarga e depois ilumina. A dor é tanta que tudo o que é ruim vai por baixo, a alma corre pros braços do Pai. Ou Mãe. Ou esse familiar que não tem palavra. Ficam nas catedrais os vitrôs doridos, por mais que coloridos. Mas o espírito deve ficar rindo de alguma coisa por trás.
Não estava nem aí pra isso. O próprio contínuo de letras atiça o pensamento de fluxo e num empuxo a correnteza leva. Quando isso acontece, é necessário dar pirueta, ser acrobata, pra retorcer e descobrir mais por si enquanto é arrastado. Se uma onda me levasse, não ia só deixar-me, ia fazer movimentos, balé do afogado. Ia ser um exercício. Compôr partitura corporal pra ninguém ver. Seria luxuoso poder mexer os braços e as pernas num desespero também controlado. Sempre à noite, constante em insônia, me projeto para lugares que preciso visitar. Às três da madrugada, vou à estrada, entro na mata, vou até uma baleia a cruzar o Pacífico – de um ponto onde nem se vê ilha – debaixo do holofote de uma lua. Vejo parentes que dormem com o rosto amassado, o porteiro da minha primeira escola roncando. Me colo na parte inferior de um avião que cruza a Índia, me agarrando pra não cair. Me pouso no cume daquela montanha que ninguém nunca foi – ali mora um buda. Tudo isso me traz paz, vou mesmo. Não me trato com imaginação. Minha medicina é ir mesmo onde a mente poderia me sabotar e ditar que é mente deslizando imagem. Tudo o que quero faço. E é de verdade. Tanto que dói. Há dois dias levei uma preta-velha na casa dos pais. E eu estava aqui, distante. A única dúvida é que ela tenha me levado. A minha seara de códigos é algo a me debruçar. Tudo me assusta porque é sem limite, mas tudo me abarca porque não tem jeito. Preciso entrar mais. Nunca cruzei um lamaçal, mas deve ser assim. É, é assim mesmo. Acabei de ver, de ir, de me arrastar lá. É como cruzar esse lamaçal, tal qual mesmo, porque é difícil chegar ali, a dois passos do que era antes. É persistência a palavra que procuro na lama.
Quando eu era criança a gente era de visitar família. Comia pêssego em calda depois do almoço com aquele tio que hoje nem me preza. Porém, hoje me visito mais. Como também e me empapuço com o que me preparo. E me prezo bem, parece. Essas visitas têm me feito bem. Na verdade, eu devia morar mais comigo. Quando a gente quer colo, não precisa chorar. É só pedir. A criança que não chora, sai ganhando. Quando morri das outras vezes, pedi colo também. Lembro daquele bicho com dente grande me entrando unha na carne e eu indo embora, sem acreditar. Ali chorei, mas também ganhei colo. Eu preciso te contar algumas coisas, mas enquanto não as descubro, sou verborragia porque ajo no agora. Não devo ser o máximo do interessante, mas preciso me contar pra mim mesmo, senão me perco. E me perder não seria bom caminho – já que tenho me visitado. Preciso voltar pro meu corpo, meu corpo inteiro. Será que há algo – que esse algo? – entre o espírito e o cavalo? Quanto pasto.