terça-feira, 19 de outubro de 2010

Masmorra - um conto de nadas

       
      Erra uma vez um menino de corpo torto que decidiu ser feliz depois de sair da masmorra. Mas morreria mais tarde por não saber como andava o mundo. Ele andava como um pombo - uma estrutura imbuída de solavancos, denunciando um sentido opaco. Por onde percorria o espaço com seu passo tolo, o mundo ria de suas tentativas. Parecia dança se não fosse tristeza cristalizada e pressões que modificaram o corpo ao longo da memória trancafiada. Só o rosto era bonito, mas o rosto é o resto do corpo. 
     Ele andava em diacronia quando se pôs à beira da terra e ali sentiu um furacão de liberdade invadindo o seu deleite. Ali não havia mais riso dos outros, estava distante do que era mundo. Uma fada (ou nada, porque ali na beira tudo podia se dar como delírio) assobiou pra ele ficar na espera. Então apaixonou-se profundamente pelo fundo do abismo e por ali se instalou feito árvore. Parece ter se enraizado profundamente no último passo de terra do precipício. Naquele ponto passava seus dias e noites inventando palavras pra descrever o que era ser feliz. Ele gritava bem alto pro abismo e o eco até que respondia, mas monossilábico. Aquilo era tudo!
    Depois de dias, dias, dias, dias, dias (que contando não foram tantos quanto ele pedia), ele percebeu que outros, outros, outros, outros, outros chegavam mais perto do abismo, essa sua casa de terra. E vinha do mundo um coro de eco, de riso, deboche e escracho. 
     Notou que suas palavras inventadas pegavam o vento da curva e paravam nos ouvidos das aldeias. Uns vinham apenas criticar, mas por surpresa, viu que também vinham mais outros, mais lindos, mais inspirados e mais soltos, também querendo na beira morar. Pra ver o fundo profundo. E foram esses outros começando a infiltrar raízes quando o menino de corpo torto, já com aspecto de árvore cascuda, não conseguiu prender-se mais ao solo. O momento foi de uma tristeza tão profunda que ninguém percebeu. Um erro. Ele não aguentou, também porque ventava um absurdo. Desprendeu-se de pequenas bolotas de terra, com as raízes sujas que nem mais via. E apaixonado pelo fundo do abismo, olhou com pena se sentindo fracassado por não ser proprietário do espaço que escolheu pra ser feliz amando e pra inventar palavras de expressão altaneira. Lançou-se à queda sombria do vazio, não ponderando o instante. Bateu um fracasso que só vendo. E em solavancos, se desprendendo (enquanto o mundo se calava assustado), conheceu de fato sua liberdade, maior do que aquela de sair de uma masmorra antiga. 


E morreu triste e feliz para sempre.


Marcelo Asth

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