sábado, 2 de outubro de 2010

Teto



(Escrevo um texto de lusco-fusco, apinhado de desmaio, sem intenção de ser bonito. Nem é; tem força de jorro sem filtro. Ultimamente meu primeiro pensamento é me abrigar na correria das letras. Não gosto do branco assobiado do papel. Gosto de símbolos que inundam a branquidão medrosa da espera. E eu não espero, me meto a desvendar a mim pra entender o que se apresenta, por fim.)

Nada mais faz sentido, está provado. Estou povoado de certezas, todas elas lancinantes. Deito plangente na cama que me acompanhou a vida antes de ter emburacado noutro destino - uma bifurcação que segui a fundo.
Largado o corpo inquieto sobre uma colcha de memória da casa antiga, a mente fica distante, vira balança. E como tua leveza pesa o prato da libra! Encosta-o no chão, gerando um som metálico que fica, fica, fica, fica e faz lembrar de mim mesmo. Estrondo. Nada mais faz sentido. Entendi o universo em pouco tempo. Foi a beleza que me destrancou em epifania.
Segui inocente a rua que não tem fim, que vai se apertando. Vão se encostando nos ossos do ombro os muros de chapisco. Como fui cego, varando o espaço sombrio, perdendo a sombra do tempo e meu reflexo antigo. Agora quero sair dessa alameda estreita e voltar tantos quilômetros pra pisar outra rua de paralelepípedo. Meus pés calados de calos, lançando-se lado a lado, dialogados, pendulares, obedeceram pelo menos o desejo de se refrescarem um pouco.  
Soube que na outra rua da bifurcação soltam balões a cada metro e eles não descem, nunca. Desdobram-se no céu pra que se admire. É coisa de sonho, descomunal.
Entendi que preciso voltar ao corpo esquecido na cama. Muito tempo sofrendo de alegria. Deu uma vontade de soltar balão... fiquei assim, desligado e suspirante.
Deito sozinho no meio-escuro do lusco-fusco e digo um tanto canastrão: melancolia (as certezas foram dormir). Essa palavra ressoa na plácida acústica do vazio. O teto do quarto traz outro significado: nele colo minhas imagens aéreas. É tanto sonho que causa zonzeira. Quase banzo por não poder me ver no espelho.  Pensamento, uma fábrica.
Era pra tudo estar apenas cintilante, mas há uma fraqueza que derruba, uma impotência inocente e uma correnteza em que quero me lançar. Afogar-se-me. Criou-se uma saudade imensa do novo, um desejo de ter vida, de me fundir na abertura. Uma brecha iluminada no olho do cego perdido. Mas prendi meus pés num buraco escuro e a nova coreografia do pas-de-deux fica truncada, trincando o bailado. Porque essa dança não é rotina, não está em cartaz e só acontece de improviso pulando dias. Não posso saltar passos por toda e qualquer rua. Ainda. Treino ‘¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬’ ensaio. Partitura corporal latente, meu corpo inquieto.
Estou voando de peito aberto, planando arredio e suspeitando paixão e fortuna, voltando os antigos passos com os pés inchados e agora descansados. Determinação.

- O corpo deitado, largado... volta! Agora! – o pensamento é uma fábrica.

Me ofusco. De novo suspiro. To pirando e não parando. Eu não tenho medo algum, sou dotado de certezas. Fundei meu mundo e não há o que fracasse, porque meu escudo é torneado de alegria legítima. Se metade da metade da meia-face do mundo tivesse meia-entrada pro meu novo espaço, eles entenderiam e se preencheriam de uma paz compreensiva. Mas só poderiam entrar e avistar - não invejar. Cobrar ingresso pode se tornar perigoso. Não preciso da aprovação do outro. Apaga o que acabou de ler, esquece. Não quero ninguém além de quem deixo entrar de graça.  
Queria deletar alguns arquivos cerebrais, abrir espaço, selecionar o que quero nos guardados. Só tenho agradecido, agradecido, agradecido. O sorriso é prova disso. É a interseção dos dois fogos irrefreáveis. Os poetas de Júpiter têm mais luas...

Voltei ao corpo largado: acendo a luz do quarto porque me lembrei de fogo. Realidade.

Na parede, acima da cabeça à dois quadros que representam loucos de minha cidade: uma velhinha que chicoteia a saia com uma vara e um homem que traz no topo da cabeça uma garrafa de Coca-Cola e em volta do pescoço um assento de privada. Gosto muito dos quadros. Olho, mas de novo me afasto. Meu corpo incontrolável, debatido em fantasia... não consigo me concentrar.

Na parede, entre os quadros à uma formiga. Fico mandando meu pensamento pra ela: não desiste, vai, vai... hei, gosto tanto de você, onde você vai? Sobe na minha coxa direita, faz cosquinha, me faz sentir engraçado!

Parece que não escuta. Será que foge de mim? Não consigo me concentrar.

Decidi. Vou abandonar minha casca nessa cama e grudar no teto, me alimentar de imagens aéreas. Pra chegar até o teto que está distante anos-luz - entendi o mistério do tempo -, cavalgo Quiron, abraçando e beijando seu pescoço sem medo do longo caminho.


Marcelo Azevedo Asth

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