sexta-feira, 23 de setembro de 2011

12:54

Posso parar este instante no máximo de detalhes que recolho. Retalhos: pios, calor, janela aberta em leve brisa, um caminhão dispara o motor, uma mulher fala ao telefone coisas de uma vida alheia, a montanha não se aguenta de luz, as flores morreram (mas ficaram hastes verdes), 12:43, menta no boca, quadros estancados, coluna curvada como a montanha. A imagem nas mãos, não nos olhos. Mas se abrir uma fenda no meu corpo, vai vazar tanto espírito que não se acreditaria. Pra não derramar por inteiro, vou só furar um ponto, com uma agulha calibrosa, de intenção pontiaguda e roliça. Pronto. Já saiu tanta coisa, que dá pra averiguar nos montes que se revelaram em minha sala, diante dos olhos – e não das mãos. Antes, devo aconselhar que a vida é só uma experiência. E quando estamos tristes, parece que entendemos, de fato, tudo. O pessimismo revela aos quatro cantos de qualquer espaço, uma entoada de sabedoria, como vento forte. É que se pára para perceber que tudo é prova. Ganhamos sentimentos da natureza por provação. Somos fase de videogame – quem será o habilidoso jogador a manipular os impulsos? Aí são olhos e mãos.
O que tem ao redor, que saiu fedendo, jorrando e temendo – revelando -, foi um desgaste tremendo que nem um pouco cintilou de luz. Uma dúvida curvada (não como a montanha), 12:49 (e todos os outros tempos contidos), uma sensação de fracasso (por não ser como o mármore, por não ser um deus), uma estranheza do mundo (difícil é alcançar paz, como uma montanha), fotos (antigas), fofocas (mentirosas e lancinantes), chateação (ainda futura), vitrines (tudo é exposto), tolices (desejo de ser maior que tudo o que aflige), músicas (seria conforto uma surdez repentina), ciúmes (não sou aquele).
Precisei furar um ponto na pele por estar estourando de lotado. Guardo tudo e não reciclo. É tanto medo colocar as mãos e olhos sobre o lixo, reciclar-devolver beleza ao mundo. No momento, prefiro vomitar, furar pontos, conduzir tudo o que me pesa pro fundo do oceano, onde um golfinho no golfo possa se alimentar e golfar todo o reciclado que, por fora de mim, se faz em contato com o mundo. Sou tão pequena que agora me escondo. 12:54.

Marli Gadot 

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Trompete

Quanto maior a ignorância, maior o medo. Não pela questão de ignorar por opção. As coisas são muito difíceis de entender. E será certo entender tudo? Ficamos no medo. Ficamos no meio do caminho, não querendo voltar, sendo penoso o passo à frente. Daí, o medo. Não tenho a suficiente sede de busca para me arrebatar a coragem vertiginosa. A coragem, sim, vem em forma de vento.
Minha opinião é curta; não culta; acredito no que é melhor; sou pouca razão; muita sensibilidade. Sendo ignorante de muito, mamando nas tetas sem saber da proveniência do leite, se me dão um tapa pra acordar, me acusando de estar dormindo... daí vem o medo. Pra acordar, concordar, entrar em acordo com quem me esbofeteia. E eu, olhando o alto do céu, num mínimo barulho, como um grilo de olhos espantados. E o outro, querendo-me elefante de sons de trompete. Se me explicarem bem, eu entendo. Quase nunca por mim só.
Me sinto inseguro por não me segurar. Me vejo no escuro quando durmo num olhar cego não por querer, mas por estar.

Marcelo Asth

Página 24

         Lavínia precisava decorar seu texto: 37 linhas rebuscadas de tédio e fala esquizofrênica. Andava pelo apartamento apertado, entre móveis e acervos de outras peças que guardava, entre figurinos em sacolas cheirando à naftalina e entre espelhos – porque gostava de se ver falando. “Christofer, não há porque sonhar... a ilusão é tão irrisória...” – repetia, repetia, repetia. E sempre falhava. “Tenho tudo nas mãos, mas tudo escorre como água pelando” e outras balelas mais...
          Sentava-se na privada de seu banheiro lilás e repetia as frases do autor desconhecido. Tomava seu banho relembrando o texto e algumas barreiras da produção, em silêncio, enquanto a água escorria pelando por seu corpo frouxo. Estavam ainda em estudo do texto, leituras brancas (quase apagadas), na mesa, em conversas - não haviam começado os ensaios de marcação. Lavínia adorava marcar, ser dirigida e sentir-se surpresa com alguma fala do diretor, como “use isso a seu favor. Aproveite essa angústia e encontre o olhar da personagem nessa fala. Vem vindo da direita alta, em passos lentos.” – e isso fazia com que Lavínia se sentisse uma deusa dos palcos. Mas ela pescava as frases em silêncio, para passar uma idéia de humildade.
      Chegando à sala de reunião, estava Everaldo, diretor formado em universidade, com um cigarro à boca e trajes suados - Lavínia cria em qualquer palavra que saísse de sua boca amarrotada. Conversaram sobre Pâmela, sua personagem sofrida, enquanto esperavam por Agnes - uma atriz mais velha e com pequena experiência no teatro, de muitos anos atrás - e por Leandro - um ator jovem, franzino, esquisito e inexperiente, de lábio leporino e olhos verdes, a quem Lavínia deveria beijar ardentemente na página 24 do roteiro. Quando todos chegaram, dentro de um atraso já esperado, sentaram-se, fumaram, tomaram café, água, comeram um biscoito vagabundo que Lavínia levou para a leitura. Depois leram a peça, discutiram cada fala com propriedade de quem disseca os sentimentos mais falsos de um ser humano inventado. Sonharam com a peça perfeita, em preto e branco, enquanto sustentavam a ilusão de suas personas.
       Foram todos para suas casas, lendo os textos pelos caminhos, nos ônibus, nos metrôs, nas ruelas. E chegaram em casa, mas só Lavínia pôs-se ainda a sentar na privada com a personagem, a banhar-se projetando filmes de perfeição cênica, a rondar vestígios de outras realidades construídas no aperto de seu apartamento frio. Somente Lavínia deitou sua cabeça pesada num travesseiro de espuma gasta e chorou com Pâmela. Não sabemos se emocionada com o destino dramático da personagem amarrada a um amor impossível – Christofer, que nada se assemelhava a Leandro, em suas fantasias - ou pela impossibilidade de ser outra coisa em sua vida. 37 linhas rebuscadas de tédio e fala esquizofrênica para viver outra vida.

Marcelo Asth