quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Mansão


Exercício de Dramaturgia - Unirio
Shreber - uma loucura que nasce pequena e fica enorme: 


Lateral esquerda da entrada principal da Residência de Madame Sant’anna, na Avenida Alberto Braune, em Nova Friburgo. Todo o madeiramento da casa veio da Europa, inclusive o mobiliário de fino acabamento.



Quando tinha dois anos respirava maresia e comia um prato de feijão sentado no sofá de sua sala, em frente a televisão. Devia nutrir um sorriso de descobertas curiosas e de sabor extasiante. Eu, por imaginar isso, choro aqui isolado. Esse menino deve estar um homem feito, pois minha imaginação é feita de antigamentes. E porque eu olho da janela o Arpoador perdido e me vem a lembrança imaginada. Daí ficou constante e escrevi uma carta de água pra ele. Ficou por aí, num calabouço dos prazeres íntimos. Nela eu dizia pra ele ser feliz, comer, crescer, ficar fortinho, uma fortuna de tanto valor.

Antes eu sonhava com o interior de uma mansão tomada de mato, numa rua do centro de minha ansiedade. Meus amigos pularam o muro de limo e a grade de ferrugem e entraram naquela espessura de atmosfera esquecida, ditadura de seu tempo de abandono. Movimentar o ar conformado, assistir a caramujos, plantas que se empinavam sobre uma mesinha esquecida. Romper o tempo é como visitar um naufrágio, com o perigo de se afogar no aquário do saudosismo que nunca foi teu. Eu tenho saudade da década de trinta sem ter nela existido. Sinto até o cheiro das pessoas apaixonadas, do doce, da madeira e dos suores todos. Agora imaginei Aurora, tísica porque foi rejeitada, de olheiras místicas e arrepios de fantasia.
Meus amigos pularam o muro e eu tive medo. O que eles trouxeram de lá de dentro foram as imagens que eu pedi. Que eu perdi. Soube de frascos de perfumes amarelados, de gotas concentradas de tédio, as últimas rejeitadas pela dona morta daquele espaço. E eu, do lado de fora do muro, tateando e apalpando minhas imagens, fui dono do casario e me tomei bobo de encanto.  Dividi com Madame Sant’anna o prazer dos novos anos.
Conto isso porque não sei distinguir mais nada. O que me vem à mente é a mais verdadeira torrente de entrega e se é emoção, realidade, ficção ou preenchimento, eu codifico como vida. A imagem das minhas lentes filmadoras vai varrendo, do soslaio ao centro, tangenciando focos nas angulações da periferia e, às vezes, entra em conflito, interferência da interjeição. Vêm chuviscos, lapsos de morfina e fico paralelo e duplo em mil existências.
Registro das lentes: papel A4 por cima de um livro que apóia a letra. Caneta azul sobre a almofada do calo. Cecília Meireles sentada na mesma poltrona amarela, de pé palito. "Mil bateias vão rodando...". Meu pé esquerdo é visto, o outro não. A máscara balinesa me debocha. Chinelo vermelho no chão de pedra, jornais e muito mais. Esse muito mais que não interessa porque agora o menino que respirava maresia bateu à minha porta, de barba feita, de passado na memória. Não é que veio me visitar? Madame Sant’anna também já está pra chegar. Mas enquanto isso não usamos uma palavra, ficamos olhando o Arpoador de longe e tentando entender nossa ligação. Sirvo um café, um cirro, dou um espirro e agora as lentes embaçam, porque o todo azul que é mistura desse vasto céu e rastro mar me estupram e pulo da janela pra me imaginar um pouco. Adeus década de trinta!
Voltei a enxergar a caneta azul. Foi ela que me levou ao mar. O que sou eu que escrevo? Estou te escrevendo, descrevendo o seu hábito de sorrir. E o seu hálito de abacaxi, lambe tropical minha vertigem.
Agora bateu uma impotência à minha porta... deu preguiça de entender. Tudo bem porque era engano. E não estou aqui pra me enganar. Codifico tudo como vida e se você quiser a gente se funde pela constância da felicidade. Por mim tudo bem. Siamesa em mim ali sobre a mesa. Não fiz nada de sobremesa, mas podemos sair pra comer um doce. Só pra isso. A vista embaça. Nossa, estou falando com o espelho e eu sou isso! Sou eu o ventríloquo. Locomovo minha mão que é o canal da fabricação circense de figuras animadas. Papel e garranchos tortos; borrões de caligrafia.
Por que sinto o peito vazio, falta o ar e o coração ameaça me deixar, ignorando minha presença de satisfação? Ele quer se jogar num barranco e rolar desdenhando minhas emoções. E por que tenho de estar sozinho, estando abafado e mortificado?
A morfina me fez cantar parabéns pensando estar sonhando. O Mabthera e a heparina, o pano verde cobrindo a ausência dos fios. A terapia das ondas de rádio dá um choque na realidade e no silêncio. E aquela luz tinha cheiro, juro. E eu mascarado com uma tela no formato do meu rosto, escama de cobra, clamando voltar ao trilho. Visitei muitos naufrágios pra conhecer teu mar. Começo a chorar e é sinal de que a tinta azul precisa parar. Por que não existe mais caneta que me entenda no que codifico.
A janela me examina e o Arpoador não está mais ali. Que gozado! Madame Sant’anna ama explicações. Me disse que sua mansão de memória é hoje um pobre estacionamento. Onde foi parar aquela pedra tão grande que havia em teu peito, Ipanema? Madame, isso são horas? Me deixe sozinho, que não tenho nada pra fazer.
Preciso renunciar o meu mundo e ser Deus em outros sete dias, dando um tom de década de trinta ao meu sonho. Vou vivê-lo. Talvez eu não exista. O que me vem à mente é a mais verdadeira torrente de entrega.


Marcelo Azevedo

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