domingo, 27 de novembro de 2011

Dominó



Uma calapsita, dois cactos, um peixe feio que refletia o neon, uma televisão de 1985 (que só deu problema duas vezes até hoje), um gato branco de porcelana na estante bamba, um sofá com a marca do lugar preferido e uma cortina florida (um lar de ácaros). Orandina no meio desses elementos, cosia, vendo o filme da tarde. Bastava um pio de bem-te-vi vindo de fora e a velha imitava o pássaro, numa mania besta. O café esquentando no bule novo, um pão quentinho que ela trouxe agora-agora, chinelas com meias, ar abafado, sorriso mental. Paz na terra às senhorinhas aquietadas, vida mansa que só.

O telefone toca. A velhinha pequena fica na dúvida se é em sua casa - há muito não ligam pra lá. Atende dizendo "pronto". É Ângela, que demora a reconhecer. "Ângela... Ângela... ah! Ângela, quanto tempo! Me desculpa, minha filha, é que já tô meio tan-tan."

A mulher que ligou não ligava há uns 3 anos. Era sua ex-nora. Ela e o filho de Orandina moravam em Gramado, sul do Brasil - foram pra lá há muitos anos e abriram uma sorveteria que não deu certo. Aliás, nada por lá deu certo, nem o casamento. Mas ficaram; a cidade era bonita. Ligou pra dizer que o ex-marido, filho da ex-sogra, o Everaldo, tava no CTI e que... 

Orandina gelou e desligou o telefone na hora, sem mais ouvir, porque CTI é caso sério. O nervosismo tomou conta e ela chorou sem saber o que fazer, parando imóvel ao lado da calapsita que ficou também nervosa em ruídos descontrolados. Saiu da casa a velha, ruminado uma quantidade imensa de "meu Deus" e esquecendo o café esquentando no fogo. Foi chamar no muro Ruth, vizinha boa, mas a voz não deu. Foi picada ali por uma abelha estranha que se enfiava entre as graxas - a flor feia que dava no lado de lá do muro da Ruth. A velha foi ficando tonta, inchando o rosto, mudando a cor. Entrou novamente pra sentar, perdendo o ar. Seu pé entrou por debaixo da dobra do tapete grosso e ela caiu batendo o ombro da bursite na mesinha de centro. A calapsita insistia berros, o peixe olhava assustado. Os ácaros de nada souberam. 

Por sorte o telefone tocou novamente - na raridade de duas vezes no mesmo dia. Era Ruth - que ligava pouco porque tinha o muro -, querendo saber se Orandina estava a fim de jogar dominó com ela. As duas jogavam vez ou outra pra passar o tempo, tomando café e falando da Igreja. Orandina atendeu golfando um "meu Deus" numa voz sem jeito, de agonia, e Ruth correu esbaforida num galope, deixando a Bíblia cair de debaixo do braço e deixando-se esquecer das coxas roliças assadas na saia de crente. 

Abriu o portão e por sorte Orandina não tinha colocado a tranqueta. Deu água pra velha, gritou Tijolo pra pegar o carro - que guardavam na vaga do prédio da frente. Correu pro hospital e, no caminho, deitada no banco de trás do Passat com Ruth, teve um infarto. Ruth gritou e Tijolo foi rezando alto e forte - um desespero desmedido. Foi pro CTI desacordada. Ruth se chocou, passou um tempo com Tijolo por lá, resolvendo as coisas, e ligou pra uma irmã que Orandina tinha na cidade. 

Quando Ruth voltou pra casa, cansada e abatida, com olhos fundos e opacos, sentiu cheiro de queimado e correu pra casa da velha vizinha. O café esquentando não era mais café: era uma massa preta fundida com o ferro do bule novo que já tinha queimado, junto a um pano de prato que dava início a um incêndio feio na cozinha tomada de calor. A calapsita de Orandina ficava na cozinha e já tinha morrido - coisa horrorosa mesmo de se ver. Ruth foi gritando pro Inimigo sair dali, pedindo ajuda de Deus e tentando falar a língua dos anjos (como os pastores faziam no culto). Inacreditável, uma brabeira. Tijolo providenciou água pra apagar o quanto podia e ligou pro 193.    

Everaldo nem ligava muito pra mãe, só dava um toque por mês - quando muito. Mas era filho, isso era verdade. Ela não ligava pra não incomodar. E ligar pra lá era mais caro. A velha poupava em tudo. "Filho a gente cria pro mundo". Ele trabalhava no CTI - Centro de Taekwondo IMPERADOR, ao lado da Gramado Fitness. Era dono da academia e professor de Taekwondo. Isso tudo depois da sorveteria não dar certo. Orandina não sabia pronunciar o que o filho fazia de jeito nenhum. "Essas lutas malucas de japonês". E também não era de ficar lembrando o nome da academia do filho, lá longe no Sul.

O que aconteceu foi um equívoco - talvez trapaça do Inimigo. É que Everaldo dava muita aula e pediu pra sua ex-mulher Ângela (com quem tinha agora um bom relacionamento, como amiga, e que trabalhava como secretária do CTI) pra que entrasse em contato com sua mãe pra convidá-la a passar uns dias em Gramado, chegando até mesmo antes do preparo da festa de debutante da neta Priscila. E pediu pra dizer que mais tarde, à noitinha, ligava de volta pra saber se a velha tinha se decidido a ir. A ex-mulher não entendeu o motivo de Orandina desligar o telefone em sua cara. Ficou pê da vida e disse pra Everaldo ligar depois - que ela estava sem paciência pra chilique de ex-sogra caquética.

Não teve telefone de volta. A irmã de Orandina foi pro hospital acompanhá-la, ligou pro Everaldo e contou o que havia acontecido - ou pelo menos uma pequeníssima parcela dos fatos ocorridos com a mãe dele naquele dia. Têm coisas que só quem vive é que sabe. 

Ângela recebeu a notícia, chorou feito criança e se lembrou com assombro da última vez que ouviu a voz de Orandina - sem saber que era ela que havia impulsionado, sem querer, a última peça da fila de dominós que a vida de Orandina dispunha secretamente.


Marcelo Asth

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Demência

- Sim, Clarice, nós ainda somos muito jovens...
- Eu queria ter 5 anos.

E ficavam a ralentar a nostalgia na suspensão de um passado perfeito. Pois não precisava ser perfeito, mas trazer uma atmosfera de um tempo passado, onde nada os preocupava. Na memória, estavam intactas as lembranças junto às criações que o tempo nos dá em liberdade. Tudo vira uma soma de algo que não existe, mas que aconteceu. Lá estão as noites de verão na varanda, a folia de Reis na madrugada - acordando a casa -, as tanajuras infestando o quintal em revoada, os olhos ardendo do sal do mar, os macacos brancos do zoológico. Esses macacos ficaram na cabeça como um marco de um contato com a natureza mais distante (de forma próxima), uma luz perfeita sobre a copa das árvores do local, o cheiro da água que levantava do tanque do hipopótamo. 


Mas ficou uma lembrança que eles tinham certeza de que havia acontecido: um dos macacos brancos falou com eles. Clarice que disse na hora, Marcos acreditou. Até hoje eles têm a certeza do fato. O macaco tinha falado sobre ter cuidado com os outros que se escondem na árvore pra roubar tudo o que existe. Não tinha muito nexo, mas aquilo impressionou profundamente.

- Um dia eu quero ser grande.

Falou, já adulto, sem compreender o que dizia. Clarice levantou os olhos e sentiu na palma das mãos a secura do tempo e não soube mais pensar com precisão o que é o tempo. A lembrança infestava sua mente como as tanajuras veraneias, morrendo vespertinas.

É um tempo sem tempo este que os habita. Um tempo onde as lembranças trazem a perfeição, pois o passado traz a base da felicidade que não tem volta. A felicidade nunca está lá na frente, ela já passou. Não tem mais jeito.

- Eu também quero crescer. Mas do jeito que eu era antes... como a gente era.

Qualquer lembrança era mera coincidência com o ocorrido. E vinha revestida de onirismo e demência. Toda a forma de se acessar o incrível lago submerso de nossa história é pura insanidade.



Martina Lengruber 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Dentes-de-leão


Quando eu era criança, amputava com minhas mãos inexatas e inocentes as hastes frágeis dos dentes-de-leão. Daí, dono daquela leve efemeridade, soprava com a força de um Zéfiro o pólen branco que se dividia aéreo como projéteis vivos. E de repente me via com cabinhos verdes na mão, sem graça, bobos. Não me eram mais úteis. Então, jogava-os na grama. Ali aprendi a espalhar o que agarrava com firmeza e jogar fora o que não me prestava. E quando a gente espalha algo, sabe que não é mais nosso, que vai além. Eu teria polinizado algum canteiro verde com minha ação de vento.
Hoje, parece que amputo meus pensamentos – campos sem-fim de dentes-de-leão. E com eles na mente, sopro com um pulmão limitado, débil e enfermo, o que posso pra fora. Expiração de esforço, lobo mau derrubando castelos dos grandes. Metade dos pensamentos bate no ventilador da sala - meu moinho quixotesco -, metade alcança uma parábola decrescente e mira o chão. Talvez um pensamento apenas voe na direção certa. Esse, espero que polinize o campo verde que quero reproduzir. Ainda pode estar vagando, curtindo as ondas do ar. E é meu desejo agora guardar os cabinhos pra uma coleção de fracasso.

Marcelo Asth