quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Sáurio


Sobre a prímula, uma solitária gota de orvalho revelava alguns tons de arco íris, prismatizando a luz solar direta. O mato estava denso, verde, como sempre de costume se colore no verão. Uma palheta arbórea, incrivelmente harmonizada. A umidade, pela proximidade à cachoeira, junto ao sol quente de montanha, trazia uma combinação perfeita e ali então se fazia adequado o lar do lagarto, que comia aranhas de vez em quando e algumas larvas gordas que se expunham fartas no mastigar das folhas. 

Pousava o sáurio sobre um galho e parava por ali alguns instantes; seu mundo não se resolvia com relógio, tudo era regido pelo sol. Enquanto houvesse uma bola incandescente incrustada no alto céu azul colonial, refletindo na gota do orvalho, resolvendo a fotossíntese da paisagem e esquentando a pedra pra onde ele ia esquentar seu sangue frio, tudo estava ordenado. Era bom saber-se dono daquele mundo. 

O lagarto, no entanto, soberano na sua tranquila natureza posta, não conhecia perigo algum, nem poderia se colocar como um poltrão desesperado a imaginar seus possíveis fins. De fato existe o instinto, mas ali não se colocava sabedoria que trouxesse a ele um medo pusilânime de fatalidades e futuros desastres. Sua ignorância sobre as possibilidades do mundo não se faziam presentes a ponto de ele se sobressaltar. 

Seu coração ectotérmico - dividido de modo imperfeito em duas aurículas e um  ventrículo parcialmente dividido - não sabia o que era medo, apenas fazia bombear gelado seu sangue. Ele nem poderia também saber das constituições do seu corpo e suas nomeações complexas. Ele só sabia o que era vida. Ele sabia o que era vida? Só se protegeria se algo viesse lento em sua direção com intenções alimentares e isso não poderia ser explicado. A natureza é um mistério delicioso. 

Enquanto ele captava um calor aconchegante da pedra da beira do rio com sua barriguinha pecilotérmica e vida pacata de ser da mata, seu olhar vago via o rio correr apressado, quedando de uma cachoeira pequena (que pra ele se fazia de catarata). Não podemos dizer que filosofava sobre o correr das águas, tendo ali cenário perfeito de repouso e meditação pra gerar o incômodo do pensamento e das rápidas ligações cerebrais que nós temos. Ele não pensava nada, não era dotado da inteligência que conhecemos. Ele era uma programação réptil que se estabeleceu. Digo era porque tudo isto que vem do sáurio é passado. Seus passos se davam rápidos até uma breve pausa fazer um jogo. Andava rapidinho e brecava. Mais um pouquinho e parava. E quando parava balançava a cabeça em sim, como se entendesse tudo. Ou talvez dançasse ao som das águas. Vagueando, andando, existindo, o lagarto largava seus rastros de movimento por uma fatia muito pequena do que entendemos mundo. 

Esta existência toda dele que me fez refletir, este sáurio que a mim se apresentou em pensamento, findou-se. Morreu. Tudo aconteceu quando um pássaro grande, de bico pontiagudo, testou ávido a sua presteza de coração quente e penado. Numa embocadura pequena e cortante, o lagarto despediu-se da vida também sem entender. Ele estava muito parado, mas seu reflexo veio como o configurado. Não deu. Tudo foi um átimo. Ele sabia da morte? Sabia que não seria mais um movimento sobre as pedras, sobre os galhos, sobre as folhas, perto das águas, próximo às gotas prismatizadas? Afirmamos sua ignorância. Ficamos no mistério. Delicioso.

Já a gente se contorce, se imagina, se acovarda, se enfrenta, filosofa numa pedra vendo água que se escorre. Sabemos das constituições. Mas sabemos também vida? Sabemos morte? Esta última certamente não. Provavelmente saberemos morte num instante mágico e ímpar, semelhante ao que o lagarto teve ao se surpreender como alimento. 

Somos alimento da natureza. Somos prismas de luz sob o sol quente que verdeja as folhas e evapora a umidade numa mistura de mil mistérios e movimentos que se dão com o mesmo teor de ignorância que nós e os sáurios possuímos. Fingimos saber. Por mais que possamos pensar. Mistérios são puras delícias.


Marcelo Asth

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