sábado, 25 de dezembro de 2010

Andrajo

Primeiro ele disse que se permitia. Que era dado à vontade. Observou o que dentro de si proferia pra entender qual rumo novo. Aquela voz taciturna que emergia do fundo de si mesmo, ditou a ele o que não era esperado. À princípio, levantou-se rindo do chão, querendo não acreditar. Mas a voz foi poluindo sua mente, o cenário foi ditando delirante. Zumbidos tronchos, martelando como megafones. A cabeça girando, girando e a voz controlando como a um soldado. Marche.

Eram doze horas no relógio de algum pulso. Ele não contava o tempo. Deixava que o vento e a voz o levasse. Mas agora ela o conduzia por ruas movimentadas, fazendo com que os carros testassem os freios. Ele esbugalhava os olhos, rasgava as roupas e vestia-se então de andrajos. Entrou na fonte de uma praça e ficou ali mergulhado o quanto pôde. 5, 13, 29 segundos. 12 minutos submerso na água lúgubre do chafariz parado. Nenhum transeunte notou. Nenhuma borbulha; o homem parecia inexistir.

A voz então ria e dizia pra ele relaxar. Ele disse que se permitia à vontade. Ela, que antes conduzia-o por estreitas cordas bambas sociais e levava-o do modo mais educado, portando orgulho e docilidade, agora dava uma rasteira no que ele se permitia. A voz não era só voz, era um ele perverso, um ele reverso. Nunca soube poder deixar-se assim e agora era só andrajos.

Saiu molhado do chafariz, bebeu uma cachaça do santo, riu de sua condição. Saiu durante dias andando sempre à frente, desviando apenas de prédios. Se visse rio, estradas, canteiros, passava por cima, por dentro, por tudo, rindo e chorando ao mesmo tempo, como nunca ninguém havia conseguido antes. 


Marcelo Asth 

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