domingo, 5 de dezembro de 2010

Movimento

Cai uma folha em apoptose. Despenca-se fabulosa num rodopio dos suicidas que descobrem o poder do ar. É sutil saber-se solta; folha velha, enrugada, amarelecida. Seu outono é cheio de ais. A folha perdura-se no instante e parece dar um suspiro ao tocar tão leve o topo do formigueiro. Cai troncha ao lado de um besouro recém-morto. Um já pós-besouro. Seu corpo é apenas corpo, dura carapaça sem sentido esperando se transformar.
O besouro então se converte na fome de uma civilização subterrânea, de um exército enegrecido que procura intranqüilo nutrir os poderes da casta antenada. Fomentar um formigueiro, dando fome ao movimentar natural de patas nervosas. Dentes, pinças, antenas descobrindo alimento, fuçando, cutucando, mordendo como máquinas. Uma só consciência que se desenvolve dentro da área de terra, cuspindo pontos pretos com vida própria, que mastigam coisas pra funcionalizar seu universo escondido.
Sob a terra, canais e ruas de grande circulação; o besouro já em partes sendo transportado em mil pedaços. Antes duro e agora roído. Já acima de tudo vê-se a coreografia de uma força viva e delirante, um fascinante ritual das pequenas coisas que se organizam nos vulcões de terra que explodem nos trechos terrosos.
Ao lado do raminho de onde a folha se desprendeu (no parapeito do galho alto), outra estrutura zumbe numa comunicação zonza de ziguezagues. Uma grande colméia se prende à grande árvore e tudo se faz maior ainda. No turbilhão de asas que se encostam à agitação do fremir alucinante, um substrato meloso é o triunfo do trabalho incansável. Do lado de fora da casa apiária, muitas abelhas trazem sob a asa os grãos de pólen amarelo pra se fazer a magia diária de fabricação de um mel que o movimento produz. O movimento.
O vento neste momento bate na ponta dos cabelos da grama, a seiva sobe lenta por dentro da casca, o sol bate no verde das folhas que ainda estão por cair.
Daqui, de onde estou - sem ver nenhum destes movimentos -, imagino e recrio com as letras que também se cristalizam a partir de um movimento, cada estrutura destas, enquanto sinto com a mão no meu peito caduco, um coração que bombeia impulsos e se coloca da mesma forma que as formas que imagino.
 Meu coração é toda essa intranqüilidade natural de terra, fogo, água e ar. E toda a falta de elementos. Ele guarda lutos, que são grandes areias movediças que levam para sempre, inexoráveis, o que não pode mais se ter. E também se banha de melancolia, um lodo que faz com que não vejamos o que nos falta.
Mesmo tentando instaurar novas conjunturas pra gerir meu coração, instalar paradigmas e renovar seus padrões, sinto que ele é claudicante e ineficiente no modo de bombear minhas angústias de movimento, que estão no mesmo patamar de uma folha, de um besouro morto e roído, de uma terra que explode, de um ar que abriga, de uma formiga que destroça, de uma abelha que fabrica, de um sentimento que habita sem sentir, sem sentido, sem ter sido convidado a passar por minha veia aorta.

Marcelo Asth

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