Era mais um dia escuro, como os outros. Lorena marcou com sua amiga de ir a uma exposição de Francis Bacon, sentir pinceladas que eram distantes das que sentia em seu mundo incômodo de ar pesado e sonolento. Precisavam sair às 15h. O pai da amiga as levaria até a porta do museu. Os pingos da chuva fizeram com que ela optasse na escolha de sua roupa pesada e impermeável, fora um par de galochas que quase não usava porque quase não saía. Uma boina de lã talvez resolvesse a liberdade dos cabelos desgrenhados. A chuva em sua cidade era quase constante. As paredes da biblioteca de sua casa guardavam tantos segredos que se continham nas vozes dos outros, que o espaço já estava denso de palavras lidas em voz alta. Por isso, sair de casa era confortante, pois era preciso respirar liberdade.
Chegou ao museu trajando roupas frias e galochas que faziam seus pés flutuarem quando na chuva. De braços dados com sua amiga, ouvia a guia da exposição discorrer sobre descentralização do real e o tempo intempestivo. Nada daquilo a preenchia. Todos os passos que escutava a sua volta traduziam as várias pessoas que pisavam silenciosas e perplexas diante das linhas coloridas do pintor.
- Vermelho-vinho. –a amiga disse próximo ao ouvido de Lorena.
- Eu me lembro o que é. Diga mais.
- Um rosto retorcido, que parece rir, ou sentir dor.
- Eu também sei bem o que é isso.
Todos viam os quadros com olhos que recebiam os pincéis de diversas formas. Cada um que se põe diante de um quadro traz um pouco da moldura de sua vida e uma tinta de seu significado. Lorena não tinha mais sua visão, mas povoou seu pensamento de linhas expressivas contorcidas na cor do sangue que escutava sua amiga narrar. Viu um mundo que os outros não podiam adentrar.
Marcelo Asth
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