quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mãos de fada



Silvana, mulher viúva, depois de 43 anos de casamento, descobriu-se apaixonada por sua grande amiga Eunice. As duas estreitaram seus laços após a morte de Adolfo - marido de Silvana - e a partir de então se frequentavam quase que diariamente. Moravam próximas uma da outra, numa rua bucólica de casas bem cuidadas. Do lado de fora da janela, as árvores faziam parecer que moravam muito distantes de qualquer burburinho de cidade grande.
Participavam juntas de muitos cursos promovidos por uma ONG que se localizava perto de sua rua. Gostavam de distrair suas cabeças ociosas. Corte e costura, culinária inteligente (onde se aproveitavam cascas e talos para a feitura de massas de pães com alto valor nutricional), economia do lar, artesanato (lindos os portas-jóias que as duas faziam com guardanapos coloridos e colados com habilidade, sem bolhas de ar) e diversos outros trabalhos manuais com passamanaria, rendas, aviamentos e sininhas. Tinham intimidade com tudo que suas mãos podiam realizar. Uma elogiava o que a outra fazia: você tem mãos de fada.
Silvana se dedicava em fazer bolos, trufas de sabores licorizados e caldos bem temperados, que levava sempre à casa de Eunice. Eunice, por sua vez, fazia empanados deliciosos, bolinhos de chuva e empadões de palmito, frango e champignon, que levava sempre à casa de Silvana. Não tinham vontade nem necessidade de fazer para outras pessoas, já que moravam sós e não precisavam vender o que produziam para aumentar a renda de casa (como bem orientavam as professoras). Gorda pensão dos falecidos.
Visitavam-se com abraços e beijos queridos. Silvana sabia visitar também em pensamentos. Não falavam dos falecidos maridos, nem fotos nos porta-retratos evidenciavam uma vida passada. Abriam suas portas, bem arrumadas e cheirosas. E rasgavam elogios junto com pedaços de papel crepom para um trabalho manual de colagem ou folhas de couve pra um cozido que preparavam com batatas bem servidas.
Silvana não entendia muito bem o que acontecia, pois nunca havia sentido essa estranheza que saía de sua cabeça como um alimento quente que sai do forno e espera ser conduzido à mesa pra se degustar. Ela ficava à noite em sua cama, matutando para definir-se, até que entendeu, por sua experiência de vida, que liberdade e vontade deviam andar juntas. Decidiu então assumir-se amando e não sentiu nem um pouco de vergonha quando se olhou nua defronte ao espelho para analisar-se como mulher apaixonada. Viu uma mulher diferente da que se entregou a Adolfo, passadas algumas décadas que agora estavam turvas de poeira. Uma entrega talvez não por paixão, porque este sentimento que experimentava agora era muito nítido e bem diferente daquela felicidade de ver-se casando. Ela sentia-se vigorosa em sua intenção. Percebeu que fora feliz porque havia erguido um sonho ao lado de um homem, sem muito se esforçar. Queria antes de tudo casar de branco, amamentar e aquelas coisas todas de sonho feminino antigo. Teve apenas uma filha (que agora morava num canto rico da Califórnia) e realizou-se rapidamente, cansando-se do sonho antes mesmo da morte separá-la de seu marido. Riu, ainda em frente à sua imagem, lembrando da jura de amor eterno que fez no altar, mas depois parou de rir por respeito. Entendeu também que amou, mas de outro jeito, pois sempre foi muito carinhosa. Viu-se atraente com sua pele pelada e pensou em Eunice de uma forma que não a constrangeu.
Nos dias seguintes, Eunice se mostrava com um brilho a mais em seu olhar. Seus pontos nos tecidos se mostravam muito bem dados e os desenhos de linha que ornavam as toalhinhas de prato eram de verdadeiro primor. Silvana, como sempre, elogiou.
Um dia, Eunice falou com Silvana que precisava compartilhar um grande segredo de confiança pra sua grande amiga, depois de darem um demorado abraço. Abraçar é um ato de se pôr entre braços e os quatro se acolhiam com intimidade. Eunice sorria, percebia-se sem jeito e perguntava se podia falar algo muito confidencial que ela vinha percebendo nos últimos tempos. Silvana gelou-se como em plena mocidade ao lidar com amor. Logo em seguida corou, pediu licença pra tirar um peixe com ervas do forno e, antes de ouvir a confissão, disse que colocaria uma música pra servir o almoço:

- Vou colocar um CD do Ray Conniff. Ou do Richard Clayderman! Esse eu adoro, é romântico... aí a gente conversa almoçando. Tudo bem? – perguntou Silvana com o coração acelerado, ajeitando o cabelo com a mão direita, mostrando unhas vermelhas bem pintadas.

- Claro! Tenho certeza que vai ser um ótimo almoço. Você é uma pessoa muito especial pra mim e quero saber uma opinião sua pra algo que venho pensando...

E assim o peixe com ervas tomou com seu aroma todo o espaço. Uma música melosa batida no piano soou como novidade. Sentaram-se à mesa, serviram-se e conversaram. Eunice, sem graça, disse que estava apaixonada. Silvana ouviu atentamente. Eunice começou seu discurso discorrendo sobre seus anos passados de casamento, dizendo-se não completa, mas sim sempre disposta em servir e ser feliz. Silvana balançou a cabeça, mastigando com lentidão. Eunice disse que precisava de rumos novos, de se doar a alguém de quem realmente gostasse e a quem admirasse, mas que deveria manter segredo por conta das duas filhas que às vezes queriam se intrometer demais na vida da mãe que morava sozinha.

Eunice comia fazendo caretas de prazer:
- Silvana, que delícia! Você tem mãos de fada!

Silvana ruborizou-se, apoiou a decisão da amiga e conduziu perguntas que levavam às respostas de que ela precisava. Eunice então pontuou, após elogiar o arroz com brócolis, dando sua última garfada no peixe delicioso e bebendo a limonada que merecia seu derradeiro gole:

- Sabe aquele senhor alto, distinto, o Cristóvão, que faz dança de salão comigo? A gente sempre se olhou demais... e eu tô apaixonada! Ele me pediu pra jantar com ele. O que você acha?

Silvana sorriu belamente (porque havia aprendido assim) e disfarçou seu desmoronamento com destreza:

- Ame, minha amiga. Ame. – disse, apertando com força sob a mesa a ponta da delicada toalha rendada que havia estendido para servir.

Marcelo Asth

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