terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Casario

      Despertei a aldrava do antigo casario - há tempos não era tocada. A ferrugem maquilava. Na grande porta um som oco de eco no além do espaço interno das trilhas de cupim.
        Vibrou em mim aquela quietude antiga e o abandono da casa atendeu ao chamado. Por uma greta próxima ao janelão à direita da porta, espiei um passado que não partia da memória, mas da imaginação. Vi entre ramos de cheflera, a alegria embotada de tempo. Havia um pranto embutido nas paredes que ruíam. Era uma casa de traços tristes que pareciam chorar azulejos de tantos que ali caíram em zonzeio. A casa não pertencia mais a ninguém. Talvez sem dono, aprisionada de um século cheio. Era tudo muito bonito e misterioso visto ali de fora, enquanto esse vento de verão preenchia fugaz o momento em que o pássaro também piava, trazendo um tom peculiar à minha festa de encontro antigo. Meu olhar retrocedeu e cedeu à fascinação do regresso. O abandono me levou.
Tem um portão podre nos fundos da casa. Posso entrar, se quiser. Não posso querer. Em mim não há chave, não há passo. Não há espaço. Um entrave de entrar. É muito mais bonito imaginar um conto por fora, cutucando um reboco e pensando ser um outro, um esboço.
Algum miosótis nasceu - não se sabe por qual motivo feliz – perto da janela em que há muito tempo (imagino eu), foi o quarto de uma criança. Hoje é um senhor morto e o quarto agora é do miosótis, que é efêmero porque é feito de vida. Será que a casa é minha porque sonho? Talvez se abrisse a porta e convidasse o novo.
A aldrava vai ficar pendente na madeira, esperando outra mão anacrônica vir bater à solidão da arquitetura. Todos os cantos das paredes vão estremecer de ansiedade, aniquilando o desamparo inquilino. Eu estremeci quando pisei todas as pedras e imaginei por ali uns passos de solas isoladas por uma barreira da idade. Sapatos que não são mais porque foram comidos por traças e fungos do mofo.
Despertei dentro de mim uma valsa dedilhada só por ver pela greta um piano de canto de sala, decomposto e arruinado nas teclas espantadas com a carência do toque musical. Pensei nas relações da casa com o espaço, as expectativas dos moradores, o que ela servia e de que forma. E o que ela poderia dar a um intruso viajante do tempo. Não quero revolver a terra, desenterrar ossos do passado - de forma alguma. Avisto e penso com respeito. Quero que a casa me dê acolhimento de compreensão, por eu ser como ela. Só de existir ainda firme, em pé numa base, resistindo forte ao esquecimento da função, ela é pura doação e oferta. Ela me mostra um tempo que não pertenci e isso é repleto de magia pra eu entender, ficar me ocupando de inquietação. Uma conexão entre dois pontos que se perdem abstratos. Fiquei por ali olhando horas, sonhando o passado. O incrível não é se perder num resgate. O mais incrível e inominável é entender-se fragmento, uma partícula de tempo incandescente, anelando e nutrindo imagens que fazem a ponte perfeita entre as gerações.
Fui adentrando não só a casa com minha imaginação indireta, abduzido pelas referências que escapavam junto à minha procura. É curioso olhar pra dentro de um casario e se ver dentro dele também, em trajes fora de moda, vivendo vida alheia. E adentrei com sorriso largo a fresta que permitia ver a alma do esqueleto de madeira e tijolo. E adentrei meu peito, inundando misterioso o meu sentimento de fora-do-tempo. É de escandalizar enxergar-se demais.

Minha alma é um casario antigo, empedrado de um isolamento que abrigo na construção.


Marcelo Asth

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