- Dor de amor dorme de tanto cutucar.
Ela perdeu o viço, ganhou olheiras e se rebaixou em todos os quesitos. Tinha começado a fazer academia e tinha até comprado um tênis melhor pra isso. Abandonou. Não quis mais saber de nada. Não via sentido e nem tinha força. Simplesmente o seu casamento perdeu a liga. Mas ela ligava demais pra isso, seu marido era uma bengala. Pediu a separação e agora ela nem tinha mais notícia dele. Me parece que ele voltou pra casa da mãe e está ajudando por lá nas finanças.
A vida toda de Adélia era caucada na do homem. Se visitava Marilda (uma vizinha muito gorda e alegre que vive com cheiro de gordura de tanto fritar salgadinho pra fora), ela não se demorava.
- Daqui há pouco Ivanir tá chegando. Rodou o dia inteiro com o táxi. Aí ele chega, lava o rosto e já senta pra jantar. Gosto de deixar tudo pronto. Ih! E tenho que passar no açougue, Marilda, porque ele não come sem carne. - era um discurso comum.
Adélia ficou sem ir ao açougue por 23 dias. Nem conseguia fazer sua própria comida, porque o calor da beirada do fogão lembrava a comida que ela fazia pra ele. Cortar alho assobiando na pressa fazia lembrar de que o táxi ia chegar buzinando. Adélia não conseguia nem mais colocar a mesa se não fosse pra ter dois pratos. Evitava olhar pra concha de feijão, que ele pegava mais de três vezes pra se servir a cada refeição. Ela deixou de comer e ficou com olhos tristes e anêmicos.
Considerando o status quo da penúria de Adélia, depois de dizer que tudo passa, fiquei pensando no que faz uma pessoa se entregar tanto. Não digo nem em relação ao marido, que isso foi só doença e cegueira comum. Eu penso nessa entrega das pessoas à dor da perda. Ela perdeu o chão e agora anda flutuando. Pra ela o tempo vai passar arrastando correntes pelo chão. Perder alguém, nestas condições mal estruturadas, é perder suas totais referências.
Vão se passar táxis nas ruas e ela vai olhar pra cada um com o coração sobressaltado. Vai à casa de Marilda e não vai conseguir ficar além do tempo. Não vai comer os salgadinhos dela pois vai estar sempre sem apetite. Vai ficar a maior parte do tempo em casa, atenta ao telefone.
"Há dentro de cada dor uma grande possibilidade de mudança", falou a apresentadora finalizando seu programa de reconciliações que passa à tarde na TV. O auditório aplaudiu calorosamente o desfecho. Eu, que estava junto, presenciei os dentes dela que tremiam na boca. Ela não disse nada, mas se eu pudesse ler pensamento, teria chutado que ela pensou "é porque não é com você".
Tomei o café que ela serviu - que estava ralo, uma água de batata, e por pouco não tinha posto sal. Engoli, fechei os olhos, bebi um copo d'água disfarçado e disse que tinha um monte de coisas pra resolver, mas que depois voltava ali. É que eu cansei de ver tristeza perto de mim. Deu um irc. Foi uma desculpa tola quando me deu agonia.
O cachorro de anos, Cartucho, estava já meio abobado, querendo carinho, talvez até com fome. Adélia deu um passa-fora no bicho, me levou ao portão e ficou ali na calçada, de calça jeans e blusa cacharrel mostarda, olhando perdida a garoa que caía na rua de paralelepípedos mal estruturados.
Marcelo Asth