sábado, 18 de setembro de 2010

Vento


Dramaturgia
esse é um dos meus textos mais antigos: 

VENTO

O seu nome era palavra feita sob medida pra vestir a minha língua. E o meu cabelo era o manto em que ele se envolvia. Dizia falar de um perfume que sentia nos fios, algum cheiro que o levava à infância. E era sempre pra ele depois do sexo um prazer, uma mania, cheirar profundamente os meus cabelos.
Ele não me tinha muito romance, muito carinho. Não me enchia de delicadezas enquanto me olhava, mas esse era o instante em que me sentia mais intensa. Era como se eu desse algo a mais do que meu corpo para um homem. Era uma necessidade minha entender que existia algum outro prazer em nossa relação.
Como ele talvez fosse o primeiro homem a registrar alguma sutileza que me chamasse a atenção, eu tinha uma necessidade de achar que o meu amor deveria ser entregue em confiança a este, que um pouco mais me conferia.
Um dia fui à beira do rio me banhar no sonho do sol e o vi com uma mulher conversando perto do areal. Seus corpos conversavam, dançavam e faiscavam num bailado, coreografados em sintonia e risos de gargalhadas. Eles se banhavam num canto de areia do rio que corria quase parado, com águas lentas a passar com desconfiança sobre aqueles corpos que ali maliciosamente se tocavam.
Não disse nada. Voltei a casa. Voltei a casa. Voltei a casa. Voltei ao espelho. Cortei todo o meu cabelo com uma tesoura que usava pra cortar a linha dos bordados. Cortei mais que fios desta vez. Cortei um bordado de sonhos. Que me deliravam no eco das batidas do peito, tanto o meu quanto o dele. Eu não disse nada. Nada. Cortei. Mais que fios.
Com as mãos trêmulas e vestidas de luto e frieza, juntei todo o meu cabelo cortado e misturei numa massa de bolo. Fiz o bolo que ele preferia. Proferia, profetizava, pronunciava palavras de raiva. Fiz o bolo que ele preferia. Com o cabelo que ele preferia.
Terminei o preparo do bolo. E coloquei num prato grande de festa, de servir sobremesas que os homens tanto gostam. Fiz o que ele preferia. Esperei ele chegar a nossa casa, cansado de puxar areia do rio.
A porta de casa abriu. E não foi o vento. Foi ele, no mesmo tempo e ritmo em que sempre a abria. Como conseguia?
Deitei na cama acolchoada que trazia ainda o peso que o nosso amor fazia. Careca. Ele antes de me procurar, cortou o bolo e comeu um pedaço. Sentiu nova textura e gritou. Novo paladar. Um que envolvia susto e inquietação. Abriu a porta do quarto e viu a mulher que agora se revelava. Morta, nua, decrépita e infeliz com seu amor barato. (Pausa). E foi assim que morreu o homem que eu tanto amava. Sangue. Corre um rio vermelho e lento. Foi ele. Não foi o vento.

Marcelo Asth

5 comentários:

  1. maravilhoso..!! de verdade!! super teatral!! vamos filmar?!

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  2. Esse eu já conheço... Foi nessa época que começamos a compartilhar nossa escrita mesmo.
    Esse texto tem um som de viola.

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  3. Marcosnauta... ah! Que legal! Precisamos de uma atriz de cabelos lindos, disposta a cortá-los no filme! hehehe!

    Lucais, toca a viola no filme?

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  4. não se deve saborear pratos feitos por mulheres traídas.

    Olha a Joana da 'Gota D'água'.. e olha o Asht agora.. ;)

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