sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A praia vermelha

Dramaturgia - UNIRIO
Exercício sobre delírio, tentações nossas transformadas - personagem em 3ª pessoa. 
Personagem apresentado e ilustrado em cena prática na aula de dramaturgia, através do estudo de atitudes/gestos nas esculturas de Rodin.

A PRAIA VERMELHA

Seu corpo se sustenta por uma só perna gorda, tendo como sua base um único pé rodeado de dedos em seu perímetro estranho, que tremem numa relia do constante roçar com o outro. Não há espaço para todos e pra acalmar a agonia da sua condição, ele pula e se desloca, fazendo pressão sobre eles.
Por conta disso procurou se isolar, se asilar num exílio. Pulou por espinhos, pedras quentes, sujeiras, campos de trigo, rios gelados, abismos, até encontrar a praia vermelha em que vive, onde nunca ninguém chegou nem por secretos pensamentos. Essa praia tem uma areia tão espessa e cortante que machuca seus dedos do pé. Mas precisa disso.
Ali aprendeu a esconder-se de si, criar raízes e ervas daninhas. Construiu uma cabana forte com o que recolhia de interessante no entorno da natureza. Assim construiu seu reino e enlouqueceu bêbado de espanto.
É interessante por demais perceber sua decadência própria. Deu-se a este estudo até o tempo se esquecer de si. Não sente mais pulsando segundos. Sente sol e lua, observa os céus e as ondas e, por isso, não tem dores na cabeça. Mas suas unhas cresceram como garras e algumas se fincaram nos dedos convulsivos mais expostos. Perdeu muitos deles, mas outros ainda estão nascendo. O último nasceu há pouco. Vejam como estranha estar entre outros tantos iguais. Um dia ele cairá do pé, nas gangrenas habituais.
Não dorme desde que nasceu, por conta dos dedos que lhe apavoram. Ficar deitado faz com que precise de âncora porque seus dedos se mexem nervosos e, sempre quando vê, se encontra há metros de onde havia parado, saindo da sombra pro sol. São involuntários e o levam pra onde querem se ele não os doma pulando em texturas paliativas.
Quando conheceu essa praia de atmosfera avermelhada, vozes de sereias o buscavam pra beber o mar, mas foi mais forte que o desejo. Na égide das filigranas daquele desenho provocador, tomou-se de ar e de cor assaltado. A primeira visão que teve quando andou sobre os primeiros passos de areia foi a de galinhas que tinham o tamanho dos cachorros bravos. Mas as galinhas, grandes e magras, cacarejavam burras sem direção, correndo tolas. Algumas se afogavam no mar. Depois percebeu que elas tinham um horário de visita rotineira àquela praia. Em torno de mil bateres de onda na praia, corriam soltas com olhos espantados de agonia e de sol escarlate. Depois sumiam não se sabe pra onde, até voltarem no dia seguinte.
O que tem feito pra se distrair é sempre alimentá-las. Às vezes as cavalga e mata algumas com suas garras. A carne que fica exposta na areia, mais vermelha que o comum naquele filtro espetacular, divide com as outras galinhas, que comem sem hesitar. Pensa na ignorância daquele bicho e fica feliz por dentro, por isso. Será que a carne que elas avançam é da galinha-mãe delas? Da galinha-irmã, da galinha-amiga? Não se existe parentesco entre bichos. Eles não pensam. Fica feliz por dentro, por isso.
Quando cutuca troncos com as garras, pra desbastá-las, recolhe o pó da madeira e enfia sob a pálpebra de algumas das suas galináceas companhias. A agonia multiplicada o faz sentir vivo e cheio de um poder misterioso. Precisa se ocupar, pois é perigoso. Ainda mais por se ver refletido na água e admirar seu sorriso manso. E nunca se reconhecer.
Havia na praia uma luz que saía de tudo e encantava os fracos. Começou a virar bicho, percebeu. Mas depois se atentou que sempre o fora, mas que agora tinha lhe despertado essa consciência cruel. Antes vivia recoberto das cores mais áureas, mais diferentes que o mundo abrigava, mas agora o vermelho único das ondas começava a lhe perturbar. Aquele mar sangrento o fazia pensar no que nunca havia alcançado na vida. E pulando na areia, olhando o mar que fazia um ruído intergaláctico e quebrava ao contrário, esperava as galinhas pensando cada vez mais em mortes e filosofias mesquinhas que inventava.
Quando os cacarejos se anunciavam, era habitual procurar brincar com as galinhas do jeito que quisesse e desejasse, mas em um dia que não se sabe contar (por não haver horas nem ponteiros naqueles instantes), ele as ignorou por completo. Ouviu vozes de sereias e nem se encantou. Elas, curiosas, chegaram tão perto da areia que encalharam nuas. Ele não se importou. “Aqueles bichos pensavam?”, pensou. Quando as galinhas se aproximaram das mulheres-peixe, elas bicaram os olhos de algumas. Nessa euforia, pegou uma das galinhas e a sufocou, fazendo com que ela morresse instantaneamente. Arrancou-lhe o grande bico e fez dele um utilitário objeto de corte. Tirou dois de seus dedos com a ponta afiada e ofereceu à última sereia que restava viva encalhada. Ela mastigou com prazer e delícia, e se tornou azul, destoante daquele cenário. Ouviram-se trovões e os sons pararam num silêncio brutal. A sereia penetrou seus pensamentos e ele pulou quase que em câmera lenta, suspenso de gozo. Foi só a sereia voltar a nadar para os fundos mares, que o que ela tocava, ficava azulado e descabido. Fez assim várias trilhas cerúleas e distantes no mar.
O vermelho o tomara tonto por muitos tempos, pulando vermelho em solos vermelhos. Ao olhar aquele matiz distinto, aquela tinta recuperada aos seus olhos, jogou-se no mar e agonizou compreendendo o universo inteiro. No que se transformou, não era mais bicho.  

Marcelo Asth

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