domingo, 23 de janeiro de 2011

Arandelas

Já está acesa a pontinha da espiral verde. Durma bem. A fumaça sobe ligeira, como que defumando o ar. A noite parece tranqüila e no ar vão quedando os pernilongos inchados de sangue, dopados. Existem três esmagados na parede da cabeceira da cama - borrões vermelhos da arte efêmera da chinelada bruta. Nas arandelas, do lado de fora da casa, um cemitério de mosquitos cansados e zonzos da diversão de luz. A rede, sob elas, balança vaga, porque a brisa parece brincar e se deitar. A quietude se mostra no silêncio de estrelas que estão muito distantes, mas que parecem saber de tudo o que acontece por aqui. As crianças dormem profundamente nos colchonetes empoeirados. Amanhã será dia de sol. Eu estou de olhos abertos olhando o escuro, que aos poucos vai se acendendo por me acostumar. É só não ter medo. Fico pensando que não tenho uma carta de amor de palavras concretas pra ler nessas horas. Só lembranças que sempre se misturam à fantasia da minha cabeça que não pára. Insólita insônia. O vento vai sendo cuspido do ventilador de teto e o barulho não vai me adormecendo. Ele me acorda e me liga com suas pás de moinho. Noite de Quixote. Uma colcha madrigal de chenile na metade do corpo, os pés descobertos com os dedos precisando de um retoque de esmalte e cheios de loção anti-mosquito. Uns zumbidos, vez em quando, no caracol da orelha. Fico pensando nos zumbidos de amor ao pé do ouvido, quando uma boca se colocava inteira com minha orelha dentro. Parecia concha, ressonância. Vou pensando nisso e desabando. Durmo só, cheia de calor, esperando a manhã. Tonteio e apago, sono dormido e pesado, vagueando por sonhos intranqüilos que me lembram de coisas que queria esquecer. Um café quando acordo, marcas de travesseiro no rosto, um filho já na rede. Levanto numa energia veraneia. Sopro as arandelas e os corpos dos mosquitos vão se espalhando pela varanda. Eu queria ter uma carta agora pra começar o dia. Vamos à praia.


Martine Bardaloux 

2 comentários:

  1. Auge do lirismo. O início então, foi de chorar. Tocante até o fundo das imagens. Que bom você ter escrito este texto! Obrigada!

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  2. que lindo você ter comentado assim! Obrigado!

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