terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Família

Neste primeiro texto que posto no ano de 2011, quis falar de família. Não quero falar nada além do que é uma descrição sintética da minha. Quero passear por este blog no futuro e ver o que pensava neste momento de agora. É como um tesouro que a gente enterra e quando reabre vê que a importância continua igual, mas que a memória é feita de surpresas.




Minha mãe, na solidão de uma casa de filhos crescidos, prepara um café, vai à varanda e assobia conversando com o papagaio da casa da rua de baixo. Ela cria uma melodia que parece ter saído de um filme antigo da Disney e ele dialoga. Ela morre de rir. Passa vários momentos do dia assim, conversando em assobio. Ela, de alminha leve, varre o chão, lava a roupa, limpa tudo. Se alguém entra em casa de sapatos que vieram de um passeio da rua, ela na hora chama a atenção. O que quase não acontece, porque a regra já foi absorvida. Não vê filmes, não lê. Ouve rádio, sempre andando de um lado pro outro da casa, vendo se tudo está em ordem. De noite ela toma um banho, vê algumas novelas deitada, prepara o jantar e bem mais tarde passa os creminhos no rosto e dorme.

Meu pai é admirado por todos à volta, pois tudo seu é em doação. Acorda aos sábados às 5h da manhã e ajuda no centro espírita fazendo visitas à pessoas enfermas com feridas abertas, em bairros distantes, no meio do nada. Lá ele leva uma palavra, uma oração e medicamentos que aliviam. Quase sempre são as pessoas que decidem não sair de casa - os médicos diriam pra amputar suas pernas. Ele alivia dores. No domingo de manhã ele recolhe alimentos pra Campanha do Quilo. E na semana ele trabalha da maneira mais honesta possível, no Tribunal Regional Eleitoral. Tem uma grande barriga, adora mastigar coisas saborosas e sua glicose traz pra ele uma realidade que sua teimosia preferia deixar de lado. Nunca reclama de nada e faz tudo pra todos, sempre querendo ajudar. Há uns 20 anos comprou uma grande filmadora que vivia pesando seu ombro e assim filmava todos os momentos de sua família - principalmente as viagens de carro que fazia por lugares interessantes do Brasil.

Minha irmã mais velha, como minha mãe, cuida muito bem de um lar e faz receitas doces maravilhas. Aos 17 anos conheceu um rapaz pela internet, num tempo em que as conversas de bate-papo da Uol começavam com "oi, tudo bem? quer teclar? vc gosta de fazer o quê?". Passados três anos ela casou com este rapaz, teve uma filha e já está casada há mais de 10 anos. Mora em Curitiba, longe demais da família e hoje a vemos duas vezes por ano. Achava que ela tinha a cabeça mais fechada, com mais preconceitos, mas hoje vejo que ela mudou bastante. Ela sente muitas saudades de Nova Friburgo.

Minha irmã do meio é incrivelmente inteligente e lê livros gordos desde muito pequena. Sempre teve alergia e brônquios mal educados. Olheiras profundas como eu. Quando era pequena tinha um jeitinho doce de moleque. Quando eu era criança abusava da sua passividade, batendo nela com minha espadinha amarela do He Man. Crescemos e nos tornamos grandes amigos - vamos à cachoeira juntos no verão e vemos mil filmes pra rir de tudo. Um dicionário/enciclopédia ambulante. Ela não acha.

Eu não tenho memória. Mas em contrapartida sou criativo. Gosto de elogios e de ser querido pelos outros. Seleciono poucas e boas pessoas pra estarem comigo na vida. Tenho sonhos que passam sempre pela paixão. Sou pé no chão e cabeça na nuvem. Dou aula de teatro pra terceira idade e quero chegar lá fazendo teatro. Não comercial, apenas o exercício. Estou muito desacreditado no teatro do jeito que se cristalizou. Quase tudo é foco no desfecho e desleixo com o processo - que pra mim é o melhor. A arte tem que ser cada vez mais focada na experiência que todos tiram dela, seja atuante, criador ou espectador. Temos que expectorar a besteira e sentir algo que pulsa e é vivo. O ego de muitos artistas anda como uma besta insaciável. Eu gosto da arte que pulsa no sangue e do que provoca, sem ser agressiva. Atentar para novos ângulos dos olhares e revisitar antigas referências misturadas ao que é contemporâneo e vivo pro mundo: pra mim esse é o papel da arte. Não digo nem que a minha arte seja a mais genuína, límpida e eficaz, mas eu me jogo nas minhas convicções, com discernimento dentro do que sou e do que quero projetar como extensão de mim em criação. Faço arte pra mim, acima de tudo, como válvula de escape e expressão. Foi isso que me salvou na vida de eu ser um bicho fechado e careta, fazendo careta pra tudo. Gosto de imagem e palavra. Isso me move. Sou completamente apaixonado e gosto de boas parcerias na vida. Vivo curioso, me surpreendendo. Acredito no meu poder de transformação, pretendendo sempre melhorar minha engrenagem de configurações. Dou ouvidos aos companheiros e aceito suas boas interferências com carinho e atenção. Tô pouco me lixando com julgamentos improdutivos. Aprendi a me julgar da melhor maneira. Quero amar, amar, amar. Quero ser feliz e o resto já basta.

Minha tartaruga vive no quintal, come carne moída de primeira (por ter menos gordura), nada numa espécie de bacia, é solitária de um jeito que nunca quero experimentar. Dorme durante todo o inverno. Aqui em Friburgo o frio castiga, mas ela tem sangue frio pra esse tipo de coisa. Faz um som de asmática quando surpreendida por um susto. Quando ela morava dentro de casa, as pessoas abriam as portas e ela saía rodando, lançada pela força da abertura. Devia viver nervosa. Um dia ela escalou com suas unhas curvadas a cortina de renda da sala, chegando quase ao teto. Foi aí que acreditei em Tartaruga Ninja.

3 comentários:

  1. Exercício gostoso esse de registrar, fotografar com palavras esse lugar de aconchego.
    Muito bom fazer parte dessa pintura.
    Adorei sua tartaruga, escrevi tartaruga e fiquei espantado com as sílabas que compõe esse substantivo: tar ta ru ga. Tive um cágado ou jabuti, nunca soube exatamente precisar sua raça (creio que seja raça essa especificação).
    Num primeiro momento quando li a postagem pensei que fosse um exercício de projeção, um retorno a família no futuro do futuro; mas quase sempre falar dessa instituição é assim. Parece que nada muda, é preciso se ater aos pequenos detalhes, as poucas palavras do que não é dito, aos sorrisos. Família é um útero, colo gostoso cheio de água pra nadar. A casa é a mãe, é o barco dentro de um outro útero que navega pelas veias do corpo de uma grande mulher.

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  2. você faz parte da pintura.
    E me atenho a esses sorrisos também, do dito e do não dito.

    beijo!

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  3. Adorei as particularidades escolhidas para nos retratar. Concordo em gênero e número e achei tudo de uma ternurinha surpreendente.

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