ouça também o ROMANCE DE UMA CAVEIRA, música que minha avó cantava pro meu pai dormir, na roça de Bom Jardim.
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Quando eu cortar meus pulsos com a faca que eu colocar pra amolar ao meio dia, você vai encontrar meu corpo com o sangue craquelado e pequenos bichos mordiscando a putrefação. E você vai ver um sorriso inédito de paz, compreensivo de dor. Minhas mãos estarão quase pendentes e as unhas roxas como as olheiras da morte. O corpo, apesar de retorcido, vai disfarçar-se relaxado e uma carta estará mal assinada, onde não se lerá nada, pois se tomará de vermelhidão. Meu peito vai conter um coração oco, de interior seco e pegajoso. Talvez ali esteja ainda presente alguma teimosa poesia querendo fazer eco. E se estiver chovendo, você vai ficar com mais vontade de chorar. Se fizer sol, talvez isto tudo afete mais, tamanho o exagero do odor de minha dor adormecida. Você pode ligar pra alguém, comunicar soluços e não encontrar soluções. E aos poucos a minha imagem de antes vai se apagar do teu sossego e em tuas noites habitarão essas derradeiras imagens. Você só vai se lembrar de mim assim, até correr pra alguma foto e constatar um fato antigo. Minhas coisas vão se tornar tuas e minhas roupas no seu corpo se adequarão. E todos os fios do tecido irão enxotar meu cheiro depois de duas lavagens à máquina ou com um banho de chuva. Aí as fotos não surtirão mais tanto efeito e o jeito será surtar e procurar uma não-solidão, porque outro olhar vai cruzar com o teu enquanto embaixo da terra meus olhos não mais existirão. E depois do olhar uma nova boca vai desabrochar como nova estação e outras fotos entrarão num novo álbum colorido. Se um dia você visitar meus ossos por respeito ou lembrança, essa boca já desabrochada vai reclamar ciúmes um tanto debochada e meus ossos se contentarão com as flores de plástico desbotado. E quando Seu Moacir (o amolador e cuteleiro da esquina) fechar as portas do seu estabelecimento por não mais procurarem seus serviços, talvez você se lembre que tinha uma faca sem fio de corte, boba e grande, mas quase cenográfica, e que talvez ele tenha afiado a faca que beijou meus pulsos. Você talvez vai chacoalhar a cabeça tentando afastar essa possível suposição e, se bater um vento sudoeste no teu cabelo neste momento, arrumando seus cabelos como pente, talvez você se espante pensando ser meu fantasma de passado. Aí sua asma vai atacar repentina e você vai parar na sua farmácia pra comprar sua bombinha. E quando chegar em casa e acessar o nosso velho álbum, você - escondido no banheiro pra não causar ciúmes - vai me querer como nunca quis em vida. E vai dar descarga pra disfarçar o choro entalado e aliviar toda a carga do meu retorno. E não vai parar de ler o que eu escrevia e vai procurar num canto da casa aquela poesia, que um dia se escondeu viva no meu peito pegajoso enquanto eu me despedia.
Marcelo Asth
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