sábado, 29 de janeiro de 2011

Útero

Quando eu fiz a cirurgia pra retirar o útero, fiquei uns dias em casa, esperando a saúde me dar nova chance. Na recuperação vomitei algumas vezes, suei frio nos lençóis e vi programas de domingo na televisão. Passados alguns dias, comendo comida ruim e com o corpo estranho, depois de orar num momento mágico e sagrado, liguei o computador de meu marido pra ver umas fotos antigas, de nossa lua de mel. Meu corpo era outro e nosso desejo era o de filhos. Nenhum veio e o desejo meio que apodreceu.
Sempre dei mais amor do que ele. Não há uma balança que pontue quantias do abstrato da emoção, mas enquanto eu dizia "te amo" ele fazia uma pergunta com certo carinho ou dizia "ah, meu bem...". Entendia que era o jeito dele. Eu fazia todas as vontades dele e ele não agradecia. Sorria de um jeito incrível, mas não agradecia. Eu tentei dar filhos a ele porque ele dizia querer um menino flamenguista. E eu, que pensava andar na corda-bamba, elástica a ponto de romper a qualquer instante, queria que esse desejo se fizesse real rapidamente. 
Olhei nossas fotos, um amor que eu acreditava, fotos do hotel, da praia, algumas fotos com minha mãe no dia anterior à viagem (que ficaram na mesma pasta). Eu-fleuma. Eu sorrindo. Eu cheia de futuros e seguranças concretas. 
Resolvi olhar o histórico do computador dele e vi o que eu não gostaria. Um histórico extenso de pornografias. No dia anterior tinha acabado de ler que os homens que se colocam numa fuga diária à pornografia eram os mais propensos a trair.  Não tinha um dia em que pernas virtuais não se abriam pra ele. Fora isso entrei no seu perfil do facebook, porque sua senha estava configurada para o acesso rápido. Muitas mensagens de uma Cristina se abriam cortantes pra mim. Não as li. Chorei porque estava violando a privacidade do meu marido e dei tapas na minha cara porque estava sendo idiota. Desliguei o computador direto no botão e dei um soco na minha barriga que me fez pensar instantaneamente nesse arrependimento burro de se socar onde ainda há cicatrizes. Eu socava muito mais, profundamente, com esse gesto. Socava a minha história burra de confiança. Ele não precisava de nada daquilo. Mas se ele o fez, é porque precisava. Depois me acalmei e coloquei numa outra balança imaginária a minha questão. O que mais pesou na hora foi o "é porque precisava". E tomei um banho, liguei a televisão com os olhos doentes de choro, uma energia baixa de me sentir inútil, nojenta e rejeitada.
Ele chegou da rua, me deu um beijo e eu fingi estar dormindo. Queria reunir coragem. Burra até nisso. Ele ligou o computador e viu que a inicialização estava diferente. Eu tinha desligado no botão. Perguntou se eu havia mexido. Eu disse que não. Ele gritou comigo. Eu comecei a gritar. Minha voz ficou rouca e minha garganta arranhava, urrava, quase sangrava. Eu suava. Ele ficou aturdido.
Daí contei tudo o que tinha visto, ele confirmou e foi dormir na casa de sua mãe. Disse que eu não estava dando o que ele queria. Eu perguntava e ele não sabia responder. Correu rápido.
Está na hora de tirar os pontos, mas estou destroçada. Ele fugiu completamente de mim enquanto eu estava dentro do seu universo. Tudo por dentro de mim sangra, gangrena e morre. Minhas últimas esperanças foram desligadas direto no botão.

Jacira Klein


2 comentários:

  1. Gostei muito da analogia final do botão!

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  2. Jacira Klein! Como escreveu a Joana no face, "forte". Gostei bastante! Li um capítulo do Cortázar que você tem que ler, curtinho e interessante.
    Ando querendo escrever sobre esses novos suportes e como eles interferem nos relacionamento: a Anhia com o fotolog e o Orkut, e essa personagem aí da Jacira com o Facebook e os históricos da internet.

    Beijão.

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