domingo, 30 de janeiro de 2011

A Escada

Essa escada, pela qual subo cada degrau com pés firmes, lendo todas as letras que pulam escada abaixo...

deixo aqui no Sótão o acesso para A Escada:


Bom demais de ler.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Útero

Quando eu fiz a cirurgia pra retirar o útero, fiquei uns dias em casa, esperando a saúde me dar nova chance. Na recuperação vomitei algumas vezes, suei frio nos lençóis e vi programas de domingo na televisão. Passados alguns dias, comendo comida ruim e com o corpo estranho, depois de orar num momento mágico e sagrado, liguei o computador de meu marido pra ver umas fotos antigas, de nossa lua de mel. Meu corpo era outro e nosso desejo era o de filhos. Nenhum veio e o desejo meio que apodreceu.
Sempre dei mais amor do que ele. Não há uma balança que pontue quantias do abstrato da emoção, mas enquanto eu dizia "te amo" ele fazia uma pergunta com certo carinho ou dizia "ah, meu bem...". Entendia que era o jeito dele. Eu fazia todas as vontades dele e ele não agradecia. Sorria de um jeito incrível, mas não agradecia. Eu tentei dar filhos a ele porque ele dizia querer um menino flamenguista. E eu, que pensava andar na corda-bamba, elástica a ponto de romper a qualquer instante, queria que esse desejo se fizesse real rapidamente. 
Olhei nossas fotos, um amor que eu acreditava, fotos do hotel, da praia, algumas fotos com minha mãe no dia anterior à viagem (que ficaram na mesma pasta). Eu-fleuma. Eu sorrindo. Eu cheia de futuros e seguranças concretas. 
Resolvi olhar o histórico do computador dele e vi o que eu não gostaria. Um histórico extenso de pornografias. No dia anterior tinha acabado de ler que os homens que se colocam numa fuga diária à pornografia eram os mais propensos a trair.  Não tinha um dia em que pernas virtuais não se abriam pra ele. Fora isso entrei no seu perfil do facebook, porque sua senha estava configurada para o acesso rápido. Muitas mensagens de uma Cristina se abriam cortantes pra mim. Não as li. Chorei porque estava violando a privacidade do meu marido e dei tapas na minha cara porque estava sendo idiota. Desliguei o computador direto no botão e dei um soco na minha barriga que me fez pensar instantaneamente nesse arrependimento burro de se socar onde ainda há cicatrizes. Eu socava muito mais, profundamente, com esse gesto. Socava a minha história burra de confiança. Ele não precisava de nada daquilo. Mas se ele o fez, é porque precisava. Depois me acalmei e coloquei numa outra balança imaginária a minha questão. O que mais pesou na hora foi o "é porque precisava". E tomei um banho, liguei a televisão com os olhos doentes de choro, uma energia baixa de me sentir inútil, nojenta e rejeitada.
Ele chegou da rua, me deu um beijo e eu fingi estar dormindo. Queria reunir coragem. Burra até nisso. Ele ligou o computador e viu que a inicialização estava diferente. Eu tinha desligado no botão. Perguntou se eu havia mexido. Eu disse que não. Ele gritou comigo. Eu comecei a gritar. Minha voz ficou rouca e minha garganta arranhava, urrava, quase sangrava. Eu suava. Ele ficou aturdido.
Daí contei tudo o que tinha visto, ele confirmou e foi dormir na casa de sua mãe. Disse que eu não estava dando o que ele queria. Eu perguntava e ele não sabia responder. Correu rápido.
Está na hora de tirar os pontos, mas estou destroçada. Ele fugiu completamente de mim enquanto eu estava dentro do seu universo. Tudo por dentro de mim sangra, gangrena e morre. Minhas últimas esperanças foram desligadas direto no botão.

Jacira Klein


domingo, 23 de janeiro de 2011

Be cool

Eu vou ser uma coisa louca demais, cheia de vicissitude, escandaloso, cheio de amigos-vampiros querendo minha luz. E vou ser escroto pra caramba, sem educação, cortar os outros com voz alta e sorriso largo no que era pra ser um bom papo, pra deixar de ser o bonitinho-calminho da roda. Aí todo mundo vai pensar: "ih, que legal, ele tem atitude-voz-ativa. Se revelou. É-outra-pessoa." E vou estragar a constância da minha imagem, que todo mundo mastiga. Vou surpreender o mundo e vou perceber que vou ser mais desejado, porque as pessoas querem gente egocêntrica por perto, por mais que não falem. E não vou me importar com ninguém, porque se você se importa, abre o cu pro mundo, se esforça, beija o chão pra alguém passar, as pessoas pensam só: "esse menino é bonzinho-bonitinho-todo-luz demais". E cansei disso. E vou cuspir chiclete no chão e fumar cigarro fazendo olhar apertadinho de míope tarado e as pessoas vão achar que é puro charme. Vou colocar o cabelo pra cima e vão pensar que é estilo. Vou pedir favores descarados e as pessoas se sentirão úteis e vou agradecer fazendo mais charme, pra que valha à pena. Vou apagar as manchas dos sapatos sobre mim e vou começar a usar minhas solas nos outros. E vou clarear os dentes pra sorrir bonito e me tornar simpático com isso tudo. Todos vão dizer que sou pra frente, nada sinuoso. E vão bater palma quando eu passar porque eu vou dizer uma frase bonita sobre as pessoas que isso fizerem. E postar num blog-cult demaaaaais! E claro que se eu fizer carão e aprender gírias da moda, saber girar o pescoço do jeito que os outros querem, vai ser lindo pro meu lado. Vou pegar os tiques de sucesso! Vou provocar ciúme pra me sentir muito querido (inclusive com amigos) e viver de fofoca bem-estruturada, porque assim as pessoas se unem mais e você alcança níveis de amizade superiores. Vou encher listas-amigas de todas as boites-teatros-showzinhos-baladas com meu nome e super ir em todas as festas, bebendo cerveja demais com a galerinha, pra todo mundo achar que sou tontinho e bacana demais, só de sentir meu bafo alcoólico. Quando estiver com os olhos avermelhados, vou pegar a pessoa mais espótica e falar com olhos lassos e carinho de miguxo, emanando uma energia que vai sair como um poder de abençoar: "Evoé!". E se uma pessoa super iluminada esiver fazendo aniversário e passar por mim, vou gritar e desejar: "Axé!". Vou sair com o povinho de teatro pra cima e pra baixo, arrotando contemporaneidade e novas linguagens que EU vou criar. Não vou dizer nada poético à toa, só se for no meu limite, pra atingir minha redenção quando estiver quase sem escrúpulos.  E vou dizer pra quem se chatear: "ah, não fica assim, não." - nada além disso, nada de diálogo pra se chegar a um lugar de harmonia. E vou sair sorrindo pra dizer que sou superior àquele que se chateou. Vou passar a usar aquelas frases: "Ah, Clarice é foda! Cazuza é um poeta! Eu ããããããããmo Chico Buarque (com intenção de que amo mais do que você)". Ah, e vou alugar t-o-d-o-s os filme do Almodóvar pra ver com um grupo seleto na minha casa, no final de semana. Postando fotos do evento no facebook, claro, pra causar vontade nos outros de terem sido chamados. Vou falar "porra" e ficar com a boca aberta quando acabar o som da palavra pra dizerem que sou cool. E falar "cu" como se fosse "de jeito nenhum, obrigado". E vou ser essa novidade que vai chocar e não dar chance pra ninguém achar que não sou um relâmpago querendo te apagar. Acho que assim, tudo bastando, vestindo uma roupa alternativa-moderna-urbana-romântica-da-moda e dançando em toda a pista, você vai me notar.


Daniel Zaine

Arandelas

Já está acesa a pontinha da espiral verde. Durma bem. A fumaça sobe ligeira, como que defumando o ar. A noite parece tranqüila e no ar vão quedando os pernilongos inchados de sangue, dopados. Existem três esmagados na parede da cabeceira da cama - borrões vermelhos da arte efêmera da chinelada bruta. Nas arandelas, do lado de fora da casa, um cemitério de mosquitos cansados e zonzos da diversão de luz. A rede, sob elas, balança vaga, porque a brisa parece brincar e se deitar. A quietude se mostra no silêncio de estrelas que estão muito distantes, mas que parecem saber de tudo o que acontece por aqui. As crianças dormem profundamente nos colchonetes empoeirados. Amanhã será dia de sol. Eu estou de olhos abertos olhando o escuro, que aos poucos vai se acendendo por me acostumar. É só não ter medo. Fico pensando que não tenho uma carta de amor de palavras concretas pra ler nessas horas. Só lembranças que sempre se misturam à fantasia da minha cabeça que não pára. Insólita insônia. O vento vai sendo cuspido do ventilador de teto e o barulho não vai me adormecendo. Ele me acorda e me liga com suas pás de moinho. Noite de Quixote. Uma colcha madrigal de chenile na metade do corpo, os pés descobertos com os dedos precisando de um retoque de esmalte e cheios de loção anti-mosquito. Uns zumbidos, vez em quando, no caracol da orelha. Fico pensando nos zumbidos de amor ao pé do ouvido, quando uma boca se colocava inteira com minha orelha dentro. Parecia concha, ressonância. Vou pensando nisso e desabando. Durmo só, cheia de calor, esperando a manhã. Tonteio e apago, sono dormido e pesado, vagueando por sonhos intranqüilos que me lembram de coisas que queria esquecer. Um café quando acordo, marcas de travesseiro no rosto, um filho já na rede. Levanto numa energia veraneia. Sopro as arandelas e os corpos dos mosquitos vão se espalhando pela varanda. Eu queria ter uma carta agora pra começar o dia. Vamos à praia.


Martine Bardaloux 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Pulsos



ouça também o ROMANCE DE UMA CAVEIRA, música que minha avó cantava pro meu pai dormir, na roça de Bom Jardim. 



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Quando eu cortar meus pulsos com a faca que eu colocar pra amolar ao meio dia, você vai encontrar meu corpo com o sangue craquelado e pequenos bichos mordiscando a putrefação. E você vai ver um sorriso inédito de paz, compreensivo de dor. Minhas mãos estarão quase pendentes e as unhas roxas como as olheiras da morte. O corpo, apesar de retorcido, vai disfarçar-se relaxado e uma carta estará mal assinada, onde não se lerá nada, pois se tomará de vermelhidão. Meu peito vai conter um coração oco, de interior seco e pegajoso. Talvez ali esteja ainda presente alguma teimosa poesia querendo fazer eco. E se estiver chovendo, você vai ficar com mais vontade de chorar. Se fizer sol, talvez isto tudo afete mais, tamanho o exagero do odor de minha dor adormecida. Você pode ligar pra alguém, comunicar soluços e não encontrar soluções. E aos poucos a minha imagem de antes vai se apagar do teu sossego e em tuas noites habitarão essas derradeiras imagens. Você só vai se lembrar de mim assim, até correr pra alguma foto e constatar um fato antigo. Minhas coisas vão se tornar tuas e minhas roupas no seu corpo se adequarão. E todos os fios do tecido irão enxotar meu cheiro depois de duas lavagens à máquina ou com um banho de chuva. Aí as fotos não surtirão mais tanto efeito e o jeito será surtar e procurar uma não-solidão, porque outro olhar vai cruzar com o teu enquanto embaixo da terra meus olhos não mais existirão. E depois do olhar uma nova boca vai desabrochar como nova estação e outras fotos entrarão num novo álbum colorido. Se um dia você visitar meus ossos por respeito ou lembrança, essa boca já desabrochada vai reclamar ciúmes um tanto debochada e meus ossos se contentarão com as flores de plástico desbotado. E quando Seu Moacir (o amolador e cuteleiro da esquina) fechar as portas do seu estabelecimento por não mais procurarem seus serviços, talvez você se lembre que tinha uma faca sem fio de corte, boba e grande, mas quase cenográfica, e que talvez ele tenha afiado a faca que beijou meus pulsos. Você talvez vai chacoalhar a cabeça tentando afastar essa possível suposição e, se bater um vento sudoeste no teu cabelo neste momento, arrumando seus cabelos como pente, talvez você se espante pensando ser meu fantasma de passado. Aí sua asma vai atacar repentina e você vai parar na sua farmácia pra comprar sua bombinha. E quando chegar em casa e acessar o nosso velho álbum, você - escondido no banheiro pra não causar ciúmes - vai me querer como nunca quis em vida. E vai dar descarga pra disfarçar o choro entalado e aliviar toda a carga do meu retorno. E não vai parar de ler o que eu escrevia e vai procurar num canto da casa aquela poesia, que um dia se escondeu viva no meu peito pegajoso enquanto eu me despedia.

Marcelo Asth

Rafael

Eu gosto dessa festividade que sua mente alcança, jorrando catarticamente as referências na surpresa, sendo tudo assim, essa curiosidade e esse susto com tudo que a vida lhe apresenta. E ele se empolga com algo normal e faz um comentário legal. Bonito demais! Não tem mimos, vaidades, veleidades, não é tampouco estiolado em suas convicções. Estou a seu lado com convicção. Com ele não tenho relógio, fico sem tempo. Ele é régio no seu comportamento e vai erigindo monumentos em tudo o que seu olhar toca. E quando o olhar toca o mundo, o mundo vira uma girândola e gira em faíscas, coruscando, chispando em disparada. Ele me acalenta, me acolhe, me recolhe quando me encolho. E me engrandece, me faz gigante pela própria natureza, reavivando minha essência. Ele me mata quando olha no olho, fico todo mole. E me dá vida quando toca meu lábio. Ele em todo o papo é sábio, sabendo falar. Me conduz como luz pelo fio e é elétrico ao me amar. 

Marcelo Asth

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Monstro





Eu tomo cuidado antes de dormir, porque há um monstro gordo e áspero debaixo de minha cama. Quando piso o tapete onde repousam meus chinelos, ele acorda instantaneamente. Neste momento eu tiro os pés do chão ligeiramente e corro pra dentro do cobertor, que é uma espécie de abrigo contra monstros. E suo frio, muito frio, escorrendo angústia e oração. Aí fecho os olhos e sinto que os olhos dele brilham vermelhos, como que com as conjuntivas inflamadas e calorosas. Parece que junto à chuva, uma respiração ruidosa preenche o quarto. Quando chego à 10ª oração exausto, suado, quase morto, com os olhos tão arregalados que doem as órbitas, eu percebo que ele dorme, como se a mágica do pensamento do apelo desse um jeito no monstro. E os olhos dele cessam fogo, certamente, porque uma brisa parece rondar o quarto. Desmaio. Quando eu acordo e a luz adentra pelas lacunas da persiana, eu sinto que o monstro ainda está ali me esperando, mas nessas horas da manhã eles têm medo de sair de debaixo da cama. Aí eles não assaltam meus pés brancos e assustados. Mas piso o tapete da cama reunindo forças e gritando para as células entrarem em estado de solação já, pra eu ter energia de correr da cama até a porta e girar a maçaneta de forma presta. Tem que ser num tempo preciso, senão mesmo sendo dia claro, o bicho pode estar faminto. Uma besta fera adormecida não deve ser nunca cutucada.

Marcelo Asth

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Caô

Você diz do que não gosta, do que te aflige, te machuca, o que te enche de insegurança e de um sentimento que nem sabe dizer seu porquê. Você se posiciona, se subtrai, não fala de nada que possa ferir, anda sempre com a cabeça pra frente. Mas você leva lambada, rasteira, insistentes que os outros são quando sabem do que você não quer. Se não quer ouvir, gritam. Se não quer ver, expõem. Se não quer saber, fazem o favor de te lembrar. E você tem que ficar sorrindo, sendo lindo, maduro, crescidinho pra entender que não pode parecer estar errado. Porque você nunca está certo, o problema é seu. Aí você chora e também está errado. E é lembrado do que não gosta e aposta que nunca mais quer saber. Talvez você aprenda a aprender, a ouvir, a ver, engolir. Talvez seja melhor ser o que os outros esperam. Mas você fica entalado, cheio, mastigando a referência. E tem que rir sempre, porque tudo é lindo demais e contemporâneo demais. E você, que é careta, tradicional, quadrado e burro, tem que chorar num canto e sorrir de encanto. Você diz do que não gosta, do que te aflige, te machuca, o que te enche de insegurança e de sei lá o que mais. Você fica remoendo e não entendendo. Você não quer entender.

Olivia Blaudt, mística, lê cartas e cortes 

sábado, 15 de janeiro de 2011

Soterrado



Eu sinto essa barreira derramando por dentro de mim, um morro de terra se espalhando. Meus olhos têm esse potencial de água e eu não posso fazer muito. Estou longe e minhas memórias estão soterradas. Cada árvore, ponte, prédio, rua, calçada, tudo é área enlameada, cheia de novo cenário. Muitos gritos foram abafados, obrigados a engolir essa argilosa composição de céu e terra. Esbarro-me por todo o barro quando me aperta o coração, por saber que tenho que ficar por aqui e esperar as notícias. Pois pra Natureza pouco importa quantas vidas; ela apenas deslizou. Tudo ainda é rio e terra; paralelepípedos fomos nós que criamos. Esse grito bombástico que se ergue por cima dos telhados e massacra com força inescrupulosa de um deus. Não quero me ater à agonia. Há muitos outros caminhos agora. Mas nesse rio de memórias estão as minhas, misturadas e molhadas. Todo canto que passei, morreu de espanto. Uma guerra d’água, de soldados invisíveis e ignóbeis, onde se lava com feitos assombrosos e faz nascer uma corrente dos que ficam vivos. Sobreviver é ainda arrastar-se nesse pós-acontecimento. Porque não basta viver, tem que estar além, superviver. Queria agora estar supervivendo em minhas colinas devastadas, me unindo aos assustados. Mas no momento fico calado, esperando, com meu solo ruindo movediço e resgatando minhas memórias soterradas.


Marcelo Asth

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Estelar

Quando as estrelas alcançaram seus olhos, tenho certeza de que você habitou um pensamento raro, que poucos acessam, porque nem todos têm essa consciência poética que faz levar aos recônditos espaços de quimera e encanto. Há essas sensações feitas de brilho que esperam que nós nos encantemos com intensidade. E quando a gente se entrega ao trivial e vê que nele há toda uma existência, a gente permanece perplexo diante de um estrondo de vida. Se sente único e besta por pertencer a algo único. É agora. E estrela tá ali todo dia, presente no céu, querendo mostrar-se. Mas ver é algo diferente. A gente se acha possuidor de olhos, mas poucos os têm de fato. Uma brisa, uma lua, mil estrelas e essa praia batendo na mesma hora num saco de sentidos que trago comigo aqui. Tudo isso é feito de espanto. E eu nem sei o que sou e o que serei. A gente é boba demais por se configurar. Se gosta ou desgosta, mas tudo é a mesma coisa, gente pulsando e cheia de medo, desejo e incompreensão. Mas parece que entendo o mundo quando sei que entrando em contato com tudo isso que a gente não percebe assim tão vivo – porque a gente se acostumou de ver – é que o estalo da vertigem se estabelece. Eu quero sentir-me vivo.
Quando o mundo se fez revelado diante da sua presença, tenho certeza de que você sorriu, porque sua alma é boa. Você nem deve ter se dado ao luxo de comentar com alguém, porque quando se passa uma sensação ela morre instantaneamente. Quem adquire um segredo é incapaz de reproduzir. Ele passa como eletricidade em cada parte do corpo e da boca não passa mais. A resistência queima.
Você soube da Terra e dos anjos todos alados que riem de nossa insapiência. Segredos ancestrais. Quero saber do que você soube, mas através do teu sorriso. Será que seus dentes abertos soam como as estrelas? Porque olho pra elas e me encanto, sim, mas não sinto essa vertigem que só alguns merecem. Talvez o seu sorriso me encante mais que primaveras e estelares armações. Podem cair estrelas do céu. Daí faço pedidos e acho bonitinho o rastro. Mas parece-me que olhando esse rasgo que surge da sua fascinação, eu me deleite de forma superior. Talvez cada um olhe a vida de forma espetacular diferente. Pra mim o seu lábio construindo essa razão feliz me diga mais que todo o universo sorrindo em especulações de brilho e eternidade que vagam na escuridão noturna do véu que se desvela. Eu sou um ponto de interrogação com a entonação mais fácil de dar.


Patrick Sgüzel

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Louça

A goteira conta impaciente um tempo que passa lá fora, ritmando um batuque de acalento. A chuva cai fina, mas se acumula sobre o telhado, que no seu limite traz o acúmulo da sujeira que repousa sobre a casa. Sob o teto da cozinha, entregando o ouvido a essa paz, Daniel se perde lavando as poucas louças largadas, enquanto se faz outra chuva na pia.

Ele pensa como a chuva, sorrateira e paulatina. Adensa a espuma da esponja, lavando a sujeira dos pires, do bule, das colheres – restos do café da tarde. Seu pensamento escorre como água e ele vai limpando o que pode parecer alguma impureza de dentro. A vespertina alegria se convertia quando se defrontava com a rotina de encarar a pia e a solidão da carícia da água. E então sorria porque amava e lavava contemplando os sons e a presença do instante que entendia saber serem únicos.


Marcelo Asth

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Ebriedade

A cabeça está girando. Estou a sentir o subitâneo sentimento que sobe ao crânio e faz do cérebro seu fantoche. Sou todo espectador. Quero que uma emoção se cole na mente e desgringole qualquer coisa que não seja surpresa. Quero que eu mesmo me esforce na tentativa de fazer querer-me. Uma taça de vinho na mão direita, girando, redeimonho cor de vinho, rodopiando olores.

Palmas pra sensação! As palmas das duas mãos descem pelo corpo me descobrindo de outra forma. Estou acompanhado e sorrio lépido, lesto.

Há tempos decidi me fantasiar de outros, mas agora que me permaneço, cedo às instâncias de mim. Não estou nem um pouco racional. Se aqui relato é porque sinto. E quem sente não teme a nada, até porque sou esse tudo perdido no vazio, espetacular e soberano. Sou um corredor de sensações e meu corpo vira um grande circo. Meu cerebelo foi sequestrado.  Por mim se penduram estas notas acrobatas de música, o hálito parece cuspir fogo e eu ando numa linha enquanto o povo ruge com estalar dos chicotes que minha língua estala numa nuca específica.

É essa coisa de sentir, ou quase sentir. Meu corpo é dono do mundo. Esta nuca vai se abrindo pra mim e se desvendando corpo. Cachos enegrecidos, mais uma taça de vinho, um sorriso que é recheado da mesma embriaguez e me eleva à altura. O mundo gira e agora isso é perceptível.

O outro corpo me invade. Nada é cedo e nada é tarde; o tempo está apenas de figuração. Sei que a música me bebe e a gente dança, rodopia, inventa passos e se apalpa. A boca abre instantânea, as pernas coçam umas às outras. A gente se desgasta e ao mesmo tempo se enche de energia. As cores da aura mudam, mesmo que imperceptíveis. Ficam cor de vinho, girando, girando, em ebriedade.


Marcelo Asth


terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Família

Neste primeiro texto que posto no ano de 2011, quis falar de família. Não quero falar nada além do que é uma descrição sintética da minha. Quero passear por este blog no futuro e ver o que pensava neste momento de agora. É como um tesouro que a gente enterra e quando reabre vê que a importância continua igual, mas que a memória é feita de surpresas.




Minha mãe, na solidão de uma casa de filhos crescidos, prepara um café, vai à varanda e assobia conversando com o papagaio da casa da rua de baixo. Ela cria uma melodia que parece ter saído de um filme antigo da Disney e ele dialoga. Ela morre de rir. Passa vários momentos do dia assim, conversando em assobio. Ela, de alminha leve, varre o chão, lava a roupa, limpa tudo. Se alguém entra em casa de sapatos que vieram de um passeio da rua, ela na hora chama a atenção. O que quase não acontece, porque a regra já foi absorvida. Não vê filmes, não lê. Ouve rádio, sempre andando de um lado pro outro da casa, vendo se tudo está em ordem. De noite ela toma um banho, vê algumas novelas deitada, prepara o jantar e bem mais tarde passa os creminhos no rosto e dorme.

Meu pai é admirado por todos à volta, pois tudo seu é em doação. Acorda aos sábados às 5h da manhã e ajuda no centro espírita fazendo visitas à pessoas enfermas com feridas abertas, em bairros distantes, no meio do nada. Lá ele leva uma palavra, uma oração e medicamentos que aliviam. Quase sempre são as pessoas que decidem não sair de casa - os médicos diriam pra amputar suas pernas. Ele alivia dores. No domingo de manhã ele recolhe alimentos pra Campanha do Quilo. E na semana ele trabalha da maneira mais honesta possível, no Tribunal Regional Eleitoral. Tem uma grande barriga, adora mastigar coisas saborosas e sua glicose traz pra ele uma realidade que sua teimosia preferia deixar de lado. Nunca reclama de nada e faz tudo pra todos, sempre querendo ajudar. Há uns 20 anos comprou uma grande filmadora que vivia pesando seu ombro e assim filmava todos os momentos de sua família - principalmente as viagens de carro que fazia por lugares interessantes do Brasil.

Minha irmã mais velha, como minha mãe, cuida muito bem de um lar e faz receitas doces maravilhas. Aos 17 anos conheceu um rapaz pela internet, num tempo em que as conversas de bate-papo da Uol começavam com "oi, tudo bem? quer teclar? vc gosta de fazer o quê?". Passados três anos ela casou com este rapaz, teve uma filha e já está casada há mais de 10 anos. Mora em Curitiba, longe demais da família e hoje a vemos duas vezes por ano. Achava que ela tinha a cabeça mais fechada, com mais preconceitos, mas hoje vejo que ela mudou bastante. Ela sente muitas saudades de Nova Friburgo.

Minha irmã do meio é incrivelmente inteligente e lê livros gordos desde muito pequena. Sempre teve alergia e brônquios mal educados. Olheiras profundas como eu. Quando era pequena tinha um jeitinho doce de moleque. Quando eu era criança abusava da sua passividade, batendo nela com minha espadinha amarela do He Man. Crescemos e nos tornamos grandes amigos - vamos à cachoeira juntos no verão e vemos mil filmes pra rir de tudo. Um dicionário/enciclopédia ambulante. Ela não acha.

Eu não tenho memória. Mas em contrapartida sou criativo. Gosto de elogios e de ser querido pelos outros. Seleciono poucas e boas pessoas pra estarem comigo na vida. Tenho sonhos que passam sempre pela paixão. Sou pé no chão e cabeça na nuvem. Dou aula de teatro pra terceira idade e quero chegar lá fazendo teatro. Não comercial, apenas o exercício. Estou muito desacreditado no teatro do jeito que se cristalizou. Quase tudo é foco no desfecho e desleixo com o processo - que pra mim é o melhor. A arte tem que ser cada vez mais focada na experiência que todos tiram dela, seja atuante, criador ou espectador. Temos que expectorar a besteira e sentir algo que pulsa e é vivo. O ego de muitos artistas anda como uma besta insaciável. Eu gosto da arte que pulsa no sangue e do que provoca, sem ser agressiva. Atentar para novos ângulos dos olhares e revisitar antigas referências misturadas ao que é contemporâneo e vivo pro mundo: pra mim esse é o papel da arte. Não digo nem que a minha arte seja a mais genuína, límpida e eficaz, mas eu me jogo nas minhas convicções, com discernimento dentro do que sou e do que quero projetar como extensão de mim em criação. Faço arte pra mim, acima de tudo, como válvula de escape e expressão. Foi isso que me salvou na vida de eu ser um bicho fechado e careta, fazendo careta pra tudo. Gosto de imagem e palavra. Isso me move. Sou completamente apaixonado e gosto de boas parcerias na vida. Vivo curioso, me surpreendendo. Acredito no meu poder de transformação, pretendendo sempre melhorar minha engrenagem de configurações. Dou ouvidos aos companheiros e aceito suas boas interferências com carinho e atenção. Tô pouco me lixando com julgamentos improdutivos. Aprendi a me julgar da melhor maneira. Quero amar, amar, amar. Quero ser feliz e o resto já basta.

Minha tartaruga vive no quintal, come carne moída de primeira (por ter menos gordura), nada numa espécie de bacia, é solitária de um jeito que nunca quero experimentar. Dorme durante todo o inverno. Aqui em Friburgo o frio castiga, mas ela tem sangue frio pra esse tipo de coisa. Faz um som de asmática quando surpreendida por um susto. Quando ela morava dentro de casa, as pessoas abriam as portas e ela saía rodando, lançada pela força da abertura. Devia viver nervosa. Um dia ela escalou com suas unhas curvadas a cortina de renda da sala, chegando quase ao teto. Foi aí que acreditei em Tartaruga Ninja.