sábado, 27 de novembro de 2010

Propriedade

Ela pisou o capacho da porta e destruiu o sentimento ansioso, pisando com salto agulha. Esmagou o passado com destreza. Era capaz de entender que era dona dos passos. Passou pelo vão da porta e sorriu discretamente. A partir desse dado instante, olhou pra janela e se viu no azul que invadia o quarto. Era poder demais cuidar de si com propriedade.

Marcelo Asth

Verdade

Não vou mentir, até porque não faz sentido. Eu sou um ser constituído do que quero ser. E não quero me entender preso no medo do outro. Sou maior do que eu mesmo e ninguém provará o contrário. Grandioso, enxergo distâncias floridas, furacões que me assopram os ciscos do olho e me fazem rodopiar na maravilha. Parece tudo nova dança, andar com pés descalços sem temer sentir bolha. Música sopra só de caminhar, tons sobem no tímpano só por respirar aliviado e seguro. Seguro. Notas são notadas porque tudo se faz som. Fascinação. Tilintante felicidade, barulho de sinos... estou constante, e não intermitente. Estalam todos os desejos e os realizo porque sou muito compreensível comigo mesmo e almejo placidez, força e coragem. Coragem significa agir com o coração. E é com ele que se deve agir e com o cérebro que se deve sentir. O que quero vou à fundo pra descobrir no que em mim já está raso, imerso, visível. Nado e bebo a água rasa. Evaporo só de pensar em matar minha sede quando quero um manancial específico. Um açude pra deter minha ansiedade de soluços. Quero tanta coisa do que quero. Respirar com folga, sentindo o porquê de ter pulmões. Girar, rodar, completar voltas. Transformar-me a tempo de não cristalizar mesquinharia. É tudo novo. Quero cachos negros em tudo o que respiro, cheios de cambalhota e perfume. Acendo dentro de mim todas as lamparinas com teu lume. Lâmpadas de brilho incomum aos meus recantos de penumbra; estão rompendo espaços escondidos com as faíscas da luz que eu mereço, com toda a certeza. Não é pra duvidar. Nem eu mesmo faço isso. Ineditismo. Sei quem estou. Eu vejo muito mais agora, com a possibilidade de instalar focos de luz nas minhas estruturas. Procuro nas paredes em que oro, resgatar e determinar meu encontro feliz. Estou sendo alegre, cheio de vivacidade espontânea. Me descobri, enfim. Por fim, verdade. O que eu quero cada vez mais me invade. É interesse meu lutar por mim.


Marcelo Asth

domingo, 21 de novembro de 2010

sótão

Por favor, olha pra mim, mas mais pra dentro. Ali, debaixo de algum entulho, deve ter algo que você mais goste. Escolhe algo pra você levar. O que quiser, o que te traga minha lembrança. É tão importante pra mim. Pode procurar dentro do meu sótão, revirar todo o escondido. Ali, acima de alguma camada de pó talvez repouse algum interesse teu. Eu sou todo de camadas, pode ir descascando. Tenho espaços de lua que me acalentam, onde povoam sonhos ancestrais. Escolhe qualquer sonho e vive do meu lado. Faço o jogo que você quiser, viro teu pino, fico todo dado, de muitas faces. Em alguma caixa oculta deve haver o que você mais precisa. Não é possível que eu não tenha algo por menor que seja, que te tire o pé do chão. Quero te ver voar, com o gás que te insiro. Quem procura, me acha. Me racha todo o teto e espera cair alguma estrela. Faz arruaça no meu instante e celebra a nossa alma.


Marcelo Asth

Varal

Exercício de dramaturgia - descrição de objeto | relação com personagem



Neiva se encontra eufórica por ter acabado de conseguir roubar num varal perto de sua casa, a cueca de Lourival (um vizinho de rua que considera um homem muito distinto) e por isso está agora em seu quarto, trancada pra ninguém ver, com a cueca entre as mãos, lambendo o tecido vermelho de algodão e esticando o elástico frouxo que tem na borda superior. Passa a língua com mais infantilidade nos três micro-furos da cueca puída e lavada – delícia de cheiro de sabão em pó. Mãe Odalina que instruiu direitinho a moça a cumprir as tarefas pra amarrar seu homem desejado. 7, 14 ou 21 anos.
Segurando a roupa íntima do seu amado, pensa naquelas pernas grossas que se enfiam nas duas entradas que se têm para abrigá-las naquela peça barata. Como ela gostaria de ser uma costura pra poder abraçar aquelas coxas de jogador de futebol de campinho! Quase delirante, ela observa muito interessada o tecido deformado na parte da frente da cueca que, com certeza, abriga em seu bojo um volume desconcertante. Algumas linhas que estão meio soltas ela puxa com os dentes, absolutamente entregue à sua imaginação. Já uma etiquetinha feia que traz o nome da confecção, ela arranca de vez pra guardar em sua agenda.


Marcelo Asth

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Salgado

Antes nadava num mar salgado sem deixar de abrir os olhos. Forçou a vista desde cedo a salgar-se e nem percebia o vermelho que produzia. Se via sempre cansado, mas de pulmões plenos de tanto nadar. Mudou-se da cidade litorânea para uma cidade de serras verdes, mas por já trazer um espírito aguado de peixe, comprou um título de um clube para poder nadar. E ao entrar em contato com o cloro mais regularmente, preferiu nadar de olhos fechados sob a linha d'água que roça com a linha de ar. Ainda mais porque nadava no frio da noite e aprendeu a medir distâncias fluidas nas correntes que criava nas raias escuras. Era um peixe cego, sem escamas, tateando águas quase silenciosas e quase sonoras com o bater de seus golpes cada vez mais precisos. Depois de metas de natação, de medir longas distâncias, nadava com destreza sinuosa, escavando leves gotas abraçadas. Até que um dia conheceu uma pessoa que também foi nadar na piscina do clube à noite, mas que nadava com óculos de proteção. E foi rápido perceber que deveria ser gostoso poder olhar um pouco do movimento dela por debaixo daquelas águas tão moles. O pouco de luz que caía sobre a superfície da piscina infiltrava necessária pra se ver bons movimentos. Ele comprou óculos parecidos com os dela e começou a nadar de olhos bem abertos, sabendo agora de toda a totalidade das distâncias do mar que ele em felicidade resgatava.


Marcelo Asth

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Estrutura



Este espaço urbano repleto de coisas que não significam nada começou a lhe atordoar a partir do momento em que, ao ver de perto uma obra na rua em que morava, descobriu o que havia de subterrâneo, abaixo dos paralelepípedos. Um grande buraco que interditava sua rua lhe revelou o que sua vista não poderia sempre alcançar. Esta obra trazia um barulho besta e incomum aos dias e ali se encontravam alguns canos expostos, uma rede escondida que levava algo a algum lugar, terra e águas sujas empoçadas, onde os homens trabalhavam com intimidade. Neste momento um lampejo desnecessário lhe veio à cabeça, de que não entendia nada do mundo. Sentiu-se um pouco mal de entender tão pouco e colocou-se culpado também por não ler jornais, ao ver um senhor de poucos cabelos saindo superior de uma banca. Passava por aquela rua todos os dias e não conseguia entender a rede que estava ali escondida, qual seria sua importância pro funcionamento do cotidiano e quem a pensou desta maneira. Deduziu o óbvio, tentando se explicar como se levava o esgoto dos prédios a alguma estação de tratamento (ou para os rios). Gradualmente foi percebendo que não poderia entender milhões de outras coisas mais simples e também mais complicadas que o homem inventou neste tempo todo de evolução da civilização. Isso só porque sua rua se encontrava em obras. Olhou pra um carro parado e pela primeira vez, sem a película da normalidade e do costume de olhar, pensou na maravilha de uma máquina transportar os homens. Era tudo muito engenhoso, desde o mais simples. E pensou em petróleo e em quem pode ter descoberto que furando o fundo do mar se resolvia com uma gosma preta o transportar dessa máquina que rodava sobre as redes de esgoto. As ruas não ruíam, mesmo com o grande peso dos carros. E mascando um chiclete, lembrou que uma vez ouviu que este também tinha em sua composição a mesma gosma preta que fazia mover as rodas. Olhou pros edifícios e se sentiu incapaz de compreender como se fazia pra edificar tijolos, concretizar espaços e verticalizar caixas pra se morar, sem que caíssem com o balançar do vento. Engenhoso demais. Viu a disposição dos paralelepípedos, que eram pedras cortadas de forma retangular, quase na mesma proporção. Elas eram dinamitadas de uma grande montanha. Quilos de pólvora e gritos de ordem para detonar. E o trabalho de encaixá-las. Num trecho além da obra, começava o asfalto. Não conseguiu chegar a uma conclusão de como era feita aquela massa, mas sabia que era melhor cobrir as ruas com elas – talvez assim os carros deslizassem melhor pelas vielas. Já se sentindo bobo por não compreender tantas coisas que via sempre no mesmo trecho de rua, olhou pra um pássaro que olhou pra ele, pousado num galho. Foi ali que ele entendeu algo a mais. Entendeu que talvez aquele pássaro só entendesse seu canto, seu pio, sua pena. Que ele não sabia nada como ele. Então começou a assobiar uma música do Nelson Gonçalves, lembrou de sua mãe morta e se dirigiu à padaria, onde comprou um frango assado depois de enfrentar uma fila de 6 pessoas que riam, falavam de política sem entendê-la, da mesma maneira que os jornais reproduziam e os canais de televisão discutiam. Chegou à sua casa pelo mesmo caminho sentindo fome e vontade de devorar o frango. Lembrou que sua esposa estava fazendo o arroz do jeito que ele mais gostava, com as misturas que lhe agradavam (e que ela bem sabia). Voltou pelo mesmo trajeto, agora sem pensar os pensamentos que o inquietaram noutro instante. A obra barulhenta parece nem ter sido tão percebida agora. A fome era tamanha. Subiu o elevador olhando o espelho, sem pensar em sua estrutura complexa de também transportar. Entrou em sua casa, abriu o refrigerante e almoçou deliciosamente com sua esposa (que o serviu antes de pôr a comida em seu próprio prato), com o mesmo recorrente prazer domingueiro de não se entender as coisas mais triviais e com os hábitos mais corriqueiros que construía como um engenheiro de sua própria rotina. 


Marcelo Asth

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Bailado - Marli Gadot


A agulha com ponta de diamante desliza bailarina enquanto reproduz uma música de outra hora. Seu palco é um disco redondo, carregado de sulcos nas ranhuras dos seus desnivelamentos. A fricção em vibração gira no sentido do relógio, o que preenche de notas nossa história. E a ponta da agulha dança em outro tempo, reproduzindo meio abafada, tropeçando por vezes zonza com a atmosfera ébria que cobre nossa fatia de mistério.
Estando nós dois aninhados num chão, deitados deixando a música contar, a agulha pára e nem percebemos. E mesmo assim se continua música, porque cantamos e, de fundo, ainda na vitrola, se mantém a pulsação do palco giratório. Uma marcação de efeito, como um galope vagaroso. A coreografia acabou, mas as notas perduram consistentes. Dentro dos nossos corpos uma música ainda toca. Dentro da nossa música nossos corpos ainda se tocam. Um espelho adentrando o outro. O amor do nosso toque que dá choque em simbiose. 
Estonteados rolamos chão, numa outra partitura de dança. Bailado sem igual, improviso de intimidade.

Marli Gadot

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Trem



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{>o<} 

O trem treme no trilho,
na trama ferroviária.
Roda gira, andarilho
de trilhas imaginárias -
São mil milhas solitárias
sem deter-se em empecilhos.

No caminho tudo é paz...
o trem se esforça no início,
vai forçando um pouco mais
e acelera em sacrifício.

Come quente o carvão
e veloz, procura a ti,
que está numa estação
esperando o trem devir.

Em vigas de ferro,
madeiras dormentes
e pedras de brita,
apita seu fino berro
antes pelos poentes
onde sem aferro visita. 

Anuvia e trinca a nuvem,
Corre nú - vê como vem! 
 No vento, no trilho, no bem...
No trêmito e no brilho do trem. 



pro antigo Marcelo

Infância



Infância:



Friburgo - 1990/92