domingo, 17 de abril de 2011

Convite

Ela fica muito perdida quando entregam liberdade demais. Sai aos socos, golpeando as incertezas que ponderam as delicadezas. Poderia afagar a saudade em diferentes corpos. Tudo o que ela mais buscava era a prisão, estar encerrada em si, no máximo num único outro, em poder de simbiose. Poderia aguardar em silêncio, feito Helena tecendo a rede na espera do amor. Mas o que mais desesperava a ela era o fato da liberdade poder varrer suas veias, encharcadas de fixas configurações.
Entregou às três irmãs velhas as linhas e fazendas do vestido da festa. Retirara da funda gaveta, um camafeu de herança que há muito se encontrava enrolado num lenço com sachês de ervas. Ao invés de pregá-lo a nova vestimenta, beijou-o e depositou o camafeu na gaveta - sem os cuidados de outrora. O passado era feito de ruínas; para o novo que se abria, ela almejava futuros.
De um perfume de rosas, pingou três gotas no triângulo do corpo: dobras dos cotovelos e nuca. Não havia o mesmo sentido estar em festa, mas havia sido convidada; o convite exigia elegância, sorriso no rosto e altivez na altura dos cabelos armados. Tomou as horas e, um pouco desajeitada, calçou o sapato de salto fino. Era difícil o equilíbrio, tanto nas pernas como na mente.
A brisa do outono beijou-lhe a face. Ela se sentia nessa melancolia de sentir versos lhe rompendo instantes e sentia também que agora era livre, contemplada com os arroubos de um vento e de uma vida que se erguia imperiosa diante de seus saltos.
O pretérito projetou-se no presente. Tudo se arranjava com a música que fugia do local do baile; estava pronta pra sorrir aos outros. Avistou um moço vistoso e num ímpeto seguiu em sua direção. Ele recolhia os convites à porta, tinha um quepe engraçado e era gentil como todos com que ela suspirava. Desejou a ela uma boa noite e garantiu-lhe a diversão. Entrar por aquela porta foi um rito de passagem, pois agora a música arrombava seus poros e a orquestra não se importava. Sorveu de uma taça um gole de champagne. O gosto do álcool roçava-lhe o paladar e depois de duas, três, talvez quatro taças que vinham em sua direção, começou a girar, enquanto o mundo lhe rodava. Seus passos confundiam-se com a valsa. Suas direções premeditavam dança. Como se um teatro fosse, cada rosto que mirava era o personagem de sua história. Apesar de toda a tontura, portava com elegância a sua essência, sorria lépida e mostrava o colo que exalava seu perfume junto ao suor delicado.
Tomava ar na varanda quando sentiu um vulto próximo às suas costas. Os convidados, os muitos que estavam sentados, viam nela graça e mocidade, não julgando sua livre desenvoltura. Preferiu manter o calor daquela presença a ter certeza quanto à identidade do vulto. Só ali, enredada em sensações, construindo uma malícia que se achava morta, percebeu que entrou na festa tão tépida e desnorteada que não cumprimentou os que a convidaram.
Enquanto retirava a maquilagem defronte ao espelho, queria apagar o suspiro da diversão noturna. Saiu do banheiro (que não se lembrava mais como havia entrado), tropeçando nas moças que conversavam e corrigiam suas tintas no rosto, despedindo-se do local que não mais a percebia - rindo-se toda, com vontade de urinar, xingando o vento que continuava a cantá-la e percebendo que livre ela nunca seria.  

Eleonor Manns

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