segunda-feira, 11 de abril de 2011

60

Sessenta anos de Iêda e Aída. Vinha com letras douradas o texto principal do convite de aniversário. Iêda escolheu o modelo, a cor e a fonte. Mandaram fazer uma tiragem limitada, pra uns 150 convidados. Uma grande festa no Tijuca Tênis Clube. 


Confeccionaram vestidos iguais, em tons muito semelhantes e pálidos. Iêda trajou o rosa chá e Aída o de tom desmaiado de pêssego. Fitas no mesmo lugar do cabelo. Uma foto das duas na antiga casa dos pais, no Grajaú, ilustrava o convite. As duas moravam juntas agora na casa de herança. Iêda e Aída eram gêmeas. Fora tanta semelhança - que os olhos dos outros identificavam -, existia dentro das duas um abismo de discrepâncias e algo velado que identificava um perigo. Talvez um barril de pólvora estivesse pronto a faiscar explosão.

Iêda nasceu cerca de 2 minutos antes de Aída, por isso se dizia sempre mais velha e experiente. Por toda a vida, tomou decisões à frente da irmã, fez pirraça, acusou a irmã de bagunças que ela não tinha feito. Aída trazia sempre o traço da boca numa parábola decrescente, enquanto Iêda sorria com uma lua crescente no lugar da boca.

A primeira paixão de Aída foi descoberta por Iêda num diário de cadeadinho, que ela havia ganhado de Tia Valdete. Idêntico ao que ela também deu pra Iêda. Guardava embaixo do colchão da cama com pudor e agilidade, sabendo que não existia lugar seguro em toda a sua vida. Iêda procurou e achou a revelação. Adolfo era um homem robusto, de bigode de escovão, olhos amendoados, topete endurecido na brilhantina e óculos de inteligente. Família tradicional tijucana, ia sempre visitar os primos do Grajaú - vizinhos das gêmeas. Aída ficava no portão, pensando de forma não convencional - seus pensamentos eram românticos demais e saíam num enfado de rimas e poemas tolos. Rimava imaginando e nunca expunha seus versos. Quando resolveu contar pro amigo diário de papel mudo e surdo, sem sentimento, escreveu em versinhos:

Quão grande a formosura
que emana Adolfinho...
meu coração bate na altura
do que merece meu carinho.

Sonho acordada na janela,
enquanto ele me olha certeiro.
Quero ser a rosa na lapela
que perfuma teu corpo inteiro.

Versos ordinários confidenciados a um diário que tinha um cadeado fácil de abrir. Iêda riu-se toda lendo e repetindo em voz alta pelo quarto. Ficou roseada no rosto, o que deve ter vindo de uma raiva que acelera o sangue e destaca as hemácias. Ruboriza e altera. A primeira providência que tomou foi ir à casa dos vizinhos com uma fatia enorme do bolo quente que a mãe havia acabado de preparar. Por coincidência, Adolfo estava a palestrar com os primos. Falava de uma viagem recente à Europa - naquele instante, descrevia Milão. Ela se chegou toda ofegante, com olhares diretos nos olhos amendoados do rapaz elegante e maduro. Começaram a namorar tempos depois. A mãe ficou orgulhosa do gosto da filha e Adolfo passou a não só passar pelo portão dos vizinhos, mas também a marcar presença nos almoços de domingo, na mesa farta e no coração farto de Aída.

Como Iêda freqüentava os bailes da Tijuca e, Aída, por sofrer, ficava em casa bordando e transbordando, um dia foi ela quem quis procurar o diário da irmã. Descobriu o local secreto (atrás da estante) e também que Iêda estava se engraçando pra cima de um tal de Emílio. E claro que Aída resolveu contar tudo pra Adolfo quando ele apareceu no portão da casa à procura de Iêda. Adolfo saiu transtornado dali e bateu com o carro, morrendo duas horas depois do acidente.

Depois desse episódio, as duas ficaram deprimidas e nunca mais desejaram paixão. Os anos de passaram, os pais também morreram e as duas continuaram na casa, administrando o lar. Antes da mãe morrer, as duas se formaram professoras e começaram a dar aulas na mesma escola. Iêda sempre inventava problemas no lar e desculpas atrapalhadas no dia de escolha das turmas e horários na escola, chegando sempre antes de Aída.

Muitos anos se passaram. O dia da festa chegou. 60 anos. Juntas. Aída e Iêda se abraçaram pela manhã, com certa distância. Tomaram um ótimo café da manhã, fizeram as preparações da festa e mais pra perto do momento, se arrumaram belamente. Iêda passou um perfume caro demais. Aída espirrou, por alergia. Quase na hora da saída de casa, Aída anunciou que estava de malas prontas, estava de mudança e que o caminhão já iria chegar à casa. 

Iêda gelou a cabeça e imaginou a festa, a casa e a vida ficando sozinha, sem um espelho onde pudesse maltratar a imagem que sufocava. Como iria trabalhar seu mundo, perder suas referências? Aída havia feito seus planos e os guardou secretos, nem compartilhando com diários ou indiretas. 

Estava pronta. O caminhão pequeno buzinou e Aída começou a sua mudança, que era pouca. Iria levar umas 2 malas de roupa, que havia feito durante uma saída de Iêda aos preparativos da festa. Uma poltrona pé-palito que seu pai adorava e algumas louças que lavava sempre. Mais caixas de bugingangas. Disse que ia fazer sua vida no interior do estado. Juntou dinheiro a vida toda, guardou o que ficou pra ela de herança. Agora pensava em passar seus últimos anos em liberdade de pensamento. Tudo planejado, dava pra comprar uma casa. Santa Maria Madalena, onde se enterrou Dercy, ídolo da chanchada.

Iêda chorou em silêncio, ficou muda e com pensamentos embaralhados. Não quis falar nada. Saiu de casa à pé, pisando duro e sem passos, cambaleando contida rumo ao Tijuca Tênis Clube. Receber seus amigos.


Marcelo Asth

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