quinta-feira, 28 de abril de 2011

Aborto

O dia inteiro parecia abrigar um monstro na barriga. Uma náusea pungente. Eu poderia estar grávida de alguma esperança ou um ser que viesse dele, numa soma com o que eu trago. Eu poderia estar reagindo mal a péssima mistura detestável de maçã com leite. Ou o iogurte velho de mel. Eu poderia estar com nojo disso tudo. Por isso, por não saber de onde vinha esse meu enjoo repentino, vomitei sem culpa, expurgando e produzindo sons altos, deixando os olhos muito vermelhos de ódio e alegria de estar me expressando. Pelo menos ali, a sós, na beira da privada, totalmente pública e privada a minha dor. Me senti viva. Me acompanhando, o rádio nas alturas com aquela música ridícula, a janela aberta pro que é noturno e uma cafonice que me atormentou a vida. Os vizinhos não foram tomados por meu pranto. A lua talvez tenha escutado, mas ela é tomada por um glamour debochado, feita como a prostituta dos poetas. Talvez nesse sentido o sol seja mais solidário, por queimar sem piedade. A rosa guardada que você me deu me refletiu bem o que você é pra mim. Olhei praquele galho seco, antes verde, agora marrom. Pétalas ridículas, murchas. É assim que você ficou. Ridículo. Uns espinhos pobres que me cutucam lembrança. Eu cheirei tanto aquela flor morta! Agora a mancha no meu livro de poesia chilena, marcando pra sempre aquelas palavras que se tornaram minhas. Vomito de novo, jorro, jato, gracejos. A estupidez de se achar gigante pela própria natureza e não ser coisa alguma. É só um passatempo das massas, uma euforia das multidões. Quem passa por mim se amassa. Sendo um bebê à espera ou má digestão de comer ou ser mal comida, penso que o melhor agora é sugar toda a fumaça fétida do mundo. Compro uns maços de cigarros e os fumo todos depois que passar um batom tão cafona quanto eu. E eu ainda abri aquela carta que eu jurei nunca ler em voz alta: "Não quero lhe falar, meu grande amor, do tudo o que já falei e parece ser nota batida. Eu te amo tanto e tra-la-lá. Seus caminhos são tantos, suas emoções agora se repetem. Suas dores todas estão ainda sobrevoando, palpáveis". Toda essa besteira torta, falada, escrita, palavra, palavra, palavra, não se chega a nada, porque tua grafia não me convence. Tem que se ter piedade. O amor não é dignidade. Pra se amar tem que se ter estômago. Ou parir ou sangrar todo aborto. Inspirar fumaça pra acelerar o processo. De tantas marcas e rejeições, agora quando me amam acho patético. Coitados dos que sofrem. Eu vou depois de passar meu batom, antes de comprar cigarro, bater no liquidificador mofado a maçã velha e caquética que guardo há tempos na geladeira e bater com o leite azedo que tive preguiça de jogar fora. Beber, beber, beber. Ouvindo aquela musiquinha chata, querendo ser uma deusa, toda tua, da cidade toda, puta irônica rindo na cama, se coçando fingindo amor. Você deve adorar que eu finja amor, eu quero ir te pisando. Por tudo o que já passei na vida. Preciso de um alvo pra testar meu salto. Que merda. Saí pra comprar cigarros.

Belina Batista

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