quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Sismógrafo

Veio com o propósito de iterar suas intenções mornas e arrefecidas. Fazia dois anos que uma discussão e muito ciúme haviam rompido as barreiras do entendimento. O caráter irascível de Gabriel pôs a solidez toda abaixo, desestruturando uma história calcada em momentos plenos e na maioria do tempo felizes. 
O convívio entre ele e seu namorado Renato era da mais pura intensidade e verdade, visto que os dois se consumiam intensamente numa unicidade que gerava nos olhos alheios um brilho de felicidade e inveja. Os dois tinham tudo pra dar certo, tudo em comum. Seus encantos e predileções passavam pelos mesmos canais e seus pares de olhos dançavam como numa farândola. Se buscavam por todos os meios, fosse por mensagens de celular, por msn, por facebook, por orkut e, principalmente, nas investidas da madrugada, quando Gabriel visitava de surpresa o apartamento de Renato, no mais caloroso encontro. A visita de surpresa era corriqueira e o moderno Romeu já era um papel decorado.
Foram 8 meses e 12 dias de paixão insolúvel. No mais, os dois tinham vidas normais e trabalhavam na normalidade dos dias. Fora isso, tudo era encontro de carne e de coração. Nos últimos tempos de namoro, Gabriel passou a podar os gestos, os olhos e os desejos de Renato. Tudo o que se direcionava era uma projeção interrompida. Na rua, quando saíam, Renato parecia usar um tapa-olhos como um cavalo de direção única. Avante, sempre em frente. Não mais sorria (porque seus dentes eram belos demais para uma exposição) e não mais se encontravam com os amigos (porque Gabriel dava a eles títulos de aproveitadores e sonsos). Dizia que qualquer carinho amistoso era um desdobramento de um desejo maior. Renato nem mais bebia, porque Gabriel dizia ter ciúmes da sua ebriedade, mesmo caseira. 
Por mais que houvesse amor, por mais que houvesse carinho, o estopim do rompimento se deu quando Marcos, um amigo de Renato, ligou convidando para um lual na noite seguinte. Pediu que levasse um livro, o violão e algumas cervejas. Riram de alguma coisa no telefone porque eram amigos. A conversa foi ouvida por Gabriel quando saía do banheiro. Se dirigiu instantaneamente e com propriedade à extensão do telefone e se pôs aos gritos intempestivos e desvairados que agora tinham se tornado rotineiros. Tudo era motivo para revirar os olhos. Gabriel olhou profundamente nos olhos de Renato dizendo que deveria sim temer a amizade entre ele e Marcos, pois sentiu nos risos que vinham flutuando até o banheiro uma intimidade demasiada carinhosa, uma sonoridade que escondia paixão. Renato expulsou Gabriel de casa sem ressentimento. Era demais suportar uma situação constrangedora de não mais ser quem ele antes era, negar uma essência para dar lugar à loucura que vinha se instalando imperiosa. O sismógrafo apitava e a terra tremia.
Foram dois anos de tristeza, mas a razão era resoluta e não abria brechas pro esmorecimento. Não se viram, não se procuraram por mensagens, redes sociais e bate-papos. Renato excluiu suas contas das redes sociais e criou perfis falsos, com o nome de Tamagoshi. E ali postava suas fotos com sorrisos abertos (porque seus dentes eram belos demais para uma exposição) e fotos com seus amigos, abraçados, deitados, queridos, brindando champagne. Trocou seu número de celular e deu graças aos ceús por não ouvir mais aquela música medonha configurada chamando a todo o instante com a foto de Gabriel, de rosto sisudo e sensual. 
Mas como da vida não se consegue facilmente um escape ou uma exclusão (até porque, obviamente uma fuga completa seria o suicídio), passados dois anos Gabriel conseguiu o novo número de Renato com uma amiga em comum. A ligação foi atendida, a voz se estabeleceu tensa e a cabeça de Renato gelou por vagos instantes. O sismógrafo parecia apitar frenético e o chão se mostrou trêmulo, com vontade de escapar de seus pés. Do outro lado da linha, uma voz tímida, objetiva, amistosa, bela e bem empostada acenou bandeira branca e pediu um encontro, um café e algumas palavras. Tamanha foi a surpresa de Renato que não houve impedimento pra palavras positivas. Haviam se passado dois anos e os fatos já estavam adormecidos. Os dois tinham vivido grande paixão, onde chegavam a se confundir em simbiose. Tinham uma energia muito parecida, um encontro de espíritos, uma loucura pelo outro. Renato na hora sorriu e em sua cabeça se projetaram somente os bons filmes da relação. Gabriel na cama era um pecado.
Marcado o local do encontro, do café e das palavras, os dois se encontraram e pareceu que tudo foi ontem. Gabriel não sabia mais como olhar nos olhos, mas os seus pareciam saber pedir desculpas. Gabriel esticou sua mão direita e sentiu que seu punho tremia. Convidava a mão de Renato. As duas mãos encontraram-se novamente e todo o entibiamento se despediu da névoa branca que cobria há tempos os dois. Os perfumes se enrolaram no olfato e no abraço e aquelas faíscas inexplicáveis se permitiram a brilhar como que mistura química das auras.
Não havia ali menor desejo de agressão, de rostir no rosto. Era só desejo de carinho na cara e no corpo. Foi dada à largada pra que os corações se acelerassem, a paz se restabelecesse, perdões fossem alimentados e desencantos fossem redimidos.
Gabriel era galante e Renato sorria mais branco que nunca. As notícias vinham à tona, emergidas do soçobrante desespero de se desencontrar. Foram dados pêsames pela mãe de Renato, que morrera há alguns meses. Parabéns pelo novo cargo de Gabriel, que almejara a tantos anos. E revelada a atual situação amorosa de Renato.
Renato há pouco menos de um mês havia firmado compromisso com Marcos, seu amigo do riso, do livro e do violão. Estavam namorando à sério, desejosos um pelo outro. Renato dizia que com Marcos estava tudo diferente, como ele nunca havia sentido ou tido algum dia. Disse estar completo, cheio de planos. Gabriel sentiu que a terra pulsava sob a mesa e que as xícaras dos cafés pulavam nos pires postos. Aos poucos foi voltando da tonteira que se acometeu, mas a terra ainda balançava tresloucada e os cacos do seu coração errante agora faziam um barulho aterrador.



Marcelo Asth

Um comentário:

  1. Amei! Estou muito feliz de você estar escrevendo mais narrativamente, de modo mais "tradicional". Gosto dessa sua vertente também. E o sismógrafo do título foi muito bem escolhido. Beijo.

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