Lavínia precisava decorar seu texto: 37 linhas rebuscadas de tédio e fala esquizofrênica. Andava pelo apartamento apertado, entre móveis e acervos de outras peças que guardava, entre figurinos em sacolas cheirando à naftalina e entre espelhos – porque gostava de se ver falando. “Christofer, não há porque sonhar... a ilusão é tão irrisória...” – repetia, repetia, repetia. E sempre falhava. “Tenho tudo nas mãos, mas tudo escorre como água pelando” e outras balelas mais...
Sentava-se na privada de seu banheiro lilás e repetia as frases do autor desconhecido. Tomava seu banho relembrando o texto e algumas barreiras da produção, em silêncio, enquanto a água escorria pelando por seu corpo frouxo. Estavam ainda em estudo do texto, leituras brancas (quase apagadas), na mesa, em conversas - não haviam começado os ensaios de marcação. Lavínia adorava marcar, ser dirigida e sentir-se surpresa com alguma fala do diretor, como “use isso a seu favor. Aproveite essa angústia e encontre o olhar da personagem nessa fala. Vem vindo da direita alta, em passos lentos.” – e isso fazia com que Lavínia se sentisse uma deusa dos palcos. Mas ela pescava as frases em silêncio, para passar uma idéia de humildade.
Chegando à sala de reunião, estava Everaldo, diretor formado em universidade, com um cigarro à boca e trajes suados - Lavínia cria em qualquer palavra que saísse de sua boca amarrotada. Conversaram sobre Pâmela, sua personagem sofrida, enquanto esperavam por Agnes - uma atriz mais velha e com pequena experiência no teatro, de muitos anos atrás - e por Leandro - um ator jovem, franzino, esquisito e inexperiente, de lábio leporino e olhos verdes, a quem Lavínia deveria beijar ardentemente na página 24 do roteiro. Quando todos chegaram, dentro de um atraso já esperado, sentaram-se, fumaram, tomaram café, água, comeram um biscoito vagabundo que Lavínia levou para a leitura. Depois leram a peça, discutiram cada fala com propriedade de quem disseca os sentimentos mais falsos de um ser humano inventado. Sonharam com a peça perfeita, em preto e branco, enquanto sustentavam a ilusão de suas personas.
Foram todos para suas casas, lendo os textos pelos caminhos, nos ônibus, nos metrôs, nas ruelas. E chegaram em casa, mas só Lavínia pôs-se ainda a sentar na privada com a personagem, a banhar-se projetando filmes de perfeição cênica, a rondar vestígios de outras realidades construídas no aperto de seu apartamento frio. Somente Lavínia deitou sua cabeça pesada num travesseiro de espuma gasta e chorou com Pâmela. Não sabemos se emocionada com o destino dramático da personagem amarrada a um amor impossível – Christofer, que nada se assemelhava a Leandro, em suas fantasias - ou pela impossibilidade de ser outra coisa em sua vida. 37 linhas rebuscadas de tédio e fala esquizofrênica para viver outra vida.
Marcelo Asth
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