sexta-feira, 27 de maio de 2011

Celeste

Celeste deu entrada no hospital na quarta-feira pela manhã. Quando seu filho médico deu a sentença, impondo pra ela uma internação, ela pensou que dessa vez ela não passava. Pensou que nunca mais ia voltar pra casa, como sempre pensava quando ia para o hospital. Mês que vem completa-se seu centenário. Celeste não quis festa, nada com tumulto. Pensou num almoço simples com a família, na casa da filha que mora em Duas Barras, numa fazendola bem arrumada. Mas no momento em que adentrou o leito em que ficaria pra tratar pneumonia, esqueceu de almoço, de apetite e de centenário. "Desta vez não passo".
No entanto, com o passar dos dias, foi se sentindo melhor, mais forte e dada aos carinhos das enfermeiras. O esfigmomanômetro que apertava seu braço várias vezes ao dia era como um carinho que não sentia há tempos. Lembrava o aperto carinhoso e sensual de Antônio, seu falecido esposo. Despertou lembranças enterradas e mortas-vivas passearam no seu momento. Sua pressão, com todas essas reminiscências, ficava alterada - o que fez com que Celeste ficasse mais alguns dias sob cuidados. Perguntou à enfermeira, zonza de remédios, se estava com mal súbito. Ao mesmo tempo, ganhava uma força descomunal para uma velhinha de 99 anos de idade. Foi convertendo seu discurso dizendo que ia voltar já pra sua casa. E deu adeus a pneumonia.
No mês que se seguiu, lá estava Celeste, com um século nas costas e lembranças nos sorrisos. Almoçou com a família, ficou um pouco sentada com os bisnetos soltos correndo à volta, imaginando o que seria ter pernas com aquela energia. Parecia nunca ter vivido aquela vida de mocidade. Já estava tanto tempo acostumada à lentidão que, quando pegou pra ver a foto revelada da família inteira ao seu redor, percebeu um tempo parado no papel, reunindo ali ela e sua continuação, colocando lado a lado e na mesma condição de imagem fotográfica, os novos cheios de procura e mistério e a velha, cheia de encontro e sabedoria.

Marcelo Asth

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