Meus dedos resistiram por muito tempo. Por eles vibravam com intensidade um mistério. Eu ouvi esse mistério sem que eu houvesse dado permissão. Desde criança fui criado entre cobras e outros répteis e com eles tenho rastejado. Mas não em público, pois eu sou um nobre cavalheiro do reino que não é meu - do outro lado dos montes. Neste lugar de máscaras, crio em minha intimidade uma cobra que conversa comigo, no silabar e no olhar traçado. Criamos, eu e ela, uma verdade sobre o universo. Ela era o mistério que vibrava em meus dedos. Ela é um mistério que dança. A cobra não saía de minha mão direita, e seu corpo rapidamente ficava quente, dando sangue incomum à cobra. Todos os dias eu me coloco humilde em relação a ela, que tem força e coragem para rastejar a vida toda. Mas diferente das outras, que se friccionam nos solos, ela preferia o calor da minha mão. A natureza da cobra e a natureza do meu calor. Às vezes, sentia um enorme desejo de esmagar a cobra, que me era submissa. Para simplesmente vê-la morta, e me ver diante da morte.
O mago do reino tinha 3 devedores. Ele os quis tão mal, tamanha raiva, que transformou, com feitiçaria e delírio os homens em minúsculos bichos aflitos. O primeiro, alfaiate, despertou naquela manhã na mesa, ao lado do pão, sobre um prato e sob os olhos desesperados da mulher dos filhos. Ela dizia que um homem centenário de cheiro mórbido estava furioso à porta. Mas a voz do alfaiate era tão minúscula quanto sua nova formação. O alfaiate tinha esquecido da encomenda do mago, que vinha com fúria vingar. A mulher dos filhos, por proteção e pensamento inusitado, jogou o alfaiatezinho pela janela. Por entre gigantescas cascas de banana o alfaiate improvisou vestes. Viu-se sendo arrastado e comandado por um mistério. Viu-se solto no mundo, fugindo de si, topando com viajantes. No seu desterro, cruzou com outro homem também transformado em pequena coisa aflita. Este outro, ao contrário do alfaiate, andava nu e não sabia da possibilidade de se cobrir, já que a liberdade do seu mundo interior aumentava com sua pequenez. Outrora miserável e dependente, um maltrapilho de andrajos, meio cigano, meio dono da praça, vestia-se pra não existir. Acreditara na bondade dos homens e que com esmolas quitaria a dívida antiga com o mago. Numa dessas andanças, o outro homem tinha encontrado um outro minúsculo (antes o rei) e os dois tinham se unido. O rei esperava na caixa que servia de abrigo e o maltrapilho ia e vinha. O rei não havia se acostumado com o fato de não ter um séquito de súditos, pois seu pensamento agora tinha ficado menor ainda. O maltrapilho ia procurar comida e no regresso contava ao rei histórias de feudos e aldeias inventadas. Era o maltrapilho agora quem dava as esmolas. Para que o feitiço fosse desfeito era preciso que os homenzinhos comessem numa tarde de outono as uvas trazidas pelo pássaro Salomão. Além dessa tarefa, deveriam enfeitiçar uma cobra e pô-la nas mãos de um homem, seduzida. O rei sonhava todas as noites com o pássaro, o maltrapilho andava em busca dele e o alfaiate não acreditava nessas histórias. Quando viu com os próprios olhos uma cobra emaranhada nas mãos de um fidalgo, além dos planos dos dois homenzinhos nus, lembrou do quão inacreditável era a sua própria história.
A menina de grená, com menos de 2 anos, sentada num convescote, num outono da Europa, imaginou tudo isso, mas não pôde se expressar - não sabia. Então esta história se perdeu.
Sentindo que sua mãe não compreenderia sua história através de seus olhos e seu rosto ruborizado, se encolheu resignada e secretamente deleitosa: a história que se perdeu para as palavras se manteve viva em algum lugar de seu interior grande demais. Secretamente preparada para entender o mundo.
Hieronymus Matteus